![vladimir safatle](http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15152396.jpeg)
� professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.
Reflex�o cl�nica � essencial para entender muta��es dos la�os sociais
Marcelo Cipis/Folhapress | ||
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Christian Dunker � um dos principais nomes brasileiros a frente de uma tentativa de reinven��o da psican�lise em sua for�a cr�tica. At� "Estrutura e Constitui��o da Cl�nica Psicanal�tica", seus livros versavam principalmente sobre a especificidade da cl�nica, seus conceitos fundamentais em orienta��o lacaniana e as resson�ncias filos�ficas que ela mobiliza.
No entanto, a partir de "Mal-estar, Sofrimento e Sintoma", tais preocupa��es se desdobraram, de forma mais expl�cita, em uma articula��o original entre an�lise da vida social contempor�nea, de suas formas de sociabilidade e organiza��o, e modifica��es no que poder�amos chamar de "gram�tica do sofrimento".
De fato, qualquer an�lise a respeito da g�nese e do desenvolvimento das categorias cl�nicas aplicadas ao sofrimento ps�quico depara-se com a muta��o impressionante das formas de descrever as doen�as.
Em menos de um s�culo, o n�mero de categorias cl�nicas foi simplesmente multiplicado por dez. Muta��o categorial que n�o encontra par em nenhum outro setor das ci�ncias humanas ou biol�gicas. Descri��es amplamente usadas, como neuroses, paranoia, pervers�o, histeria, acabaram por simplesmente desaparecer, como se dissessem respeito a personagens de pe�as antigas de teatro.
Mas por tr�s de tais mudan�as, h� de se perceber como a gram�tica do sofrimento, nossa forma de falar de n�s mesmo atrav�s daquilo que nos faz sofrer, reconfigurou-se. Pois lembremos, com Dunker, que todo sofrimento � composto de uma narrativa (ele se estrutura em uma hist�ria), de uma demanda de reconhecimento (ele traz a luz a exist�ncia que algo que n�o consegue encontrar lugar) e de uma estrutura transitiva (ele envolve eu e o outro, mesmo quando se sofre sozinho, h� outros envolvidos).
Nesse sentido, � sempre poss�vel perguntar o que fez tal gram�tica mudar, o que redimensionou sua narrativa e a estrutura de suas demandas de reconhecimento. Pois uma sociedade n�o � apenas um sistema de regras, normas e leis, ela � uma forma de sofrer e de inscrever tal sofrimento em patologias.
N�o h� sociedade que n�o se constitua como um sistema de gest�o do sofrimento. Gest�o atrav�s da cataloga��o, da diferencia��o. Modifica��es nas formas de gest�o social implicam modifica��es nas formas que indiv�duos sofrem. � deste processo que trata o �ltimo livro de Christian Dunker: "A Reinven��o da Intimidade: Pol�ticas do Sofrimento Cotidiano" (Ubu, 320 p�ginas).
Diferentemente dos demais, este livro privilegia uma abordagem de pequenos textos que visam compor o quadro contempor�neo das formas de sofrer. Em nenhum outro livro de Dunker, fica t�o claro a contribui��o decisiva de mais de vinte anos de trabalho anal�tico e de escuta cl�nica do sofrimento.
Nele, � quest�o das muta��es da solid�o, da intimidade, dos afetos, das novas configura��es do la�o familiar, das especificidades da sociedade brasileira e, principalmente, das formas de constituir v�nculos afetivos, com seus impasses e possibilidades.
Pois trata-se de lembrar como a reflex�o cl�nica � indissoci�vel da compreens�o das muta��es dos la�os sociais em suas m�ltiplas dimens�es.
Neste ponto, "A Reinven��o da Intimidade" lembra como esse sofrimento cotidiano presente nas formas m�ltiplas de amor n�o poderia ser dissociado de uma pol�tica, ou seja, de uma pergunta a respeito da natureza das rela��es sociais e de suas muta��es.
No interior das sociedades neoliberais, sociedades nas quais economia e moral se confundem constantemente, ou seja, sociedades nas quais pol�ticas econ�micas s�o apresentadas atrav�s de valores morais ("austeridade", "controle", "conten��o", "responsabilidade"), n�o seria poss�vel que os sofrimentos nas dimens�es afetivas deixassem de ressoar modos de racionaliza��o que dizem respeito ao horizonte ideal da vida social em suas macroestruturas.
Reinven��o da Intimidade |
Christian Dunker |
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Neste quadro de an�lise, nasce no entanto a certeza de como sujeitos servem-se de suas experi�ncias de sofrimento para constituir caminhos improv�veis e la�os singulares.
Como dizia Deleuze, h� situa��es nas quais a doen�a � melhor do que a sa�de que nos prop�em. Pois em sociedades como a nossa, muitas vezes a doen�a � aquilo que os sujeitos tem de mais real, ela uma forma desesperada de lembra-los que um produ��o singular � necess�ria e poss�vel.
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