![vladimir safatle](http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15152396.jpeg)
� professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.
Talvez haja algo limitador em tratar uma vida plena como uma vida feliz
Marcelo Cipis/Editoria de Arte | ||
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Para os gregos, felicidade n�o era uma palavra que se conjugava no particular. Arist�teles, por exemplo, lembrava que a felicidade (eudaimonia) era a atividade de acordo com a virtude.
Haveria uma excel�ncia a alcan�ar por meio do exerc�cio de virtudes, atividade esta que nos permitiria evitar os extremos e alcan�ar a justa medida, o que aparece como a condi��o para realizarmos o que nos seria melhor.
Tais virtudes n�o eram, no entanto, meras determina��es normativas dos comportamentos individuais. As virtudes dos indiv�duos eram as mesmas virtudes da p�lis, ou seja, eram as mesmas disposi��es de conduta e julgamento necess�rios para a conserva��o da p�lis.
Em grego, n�o � poss�vel dizer "v�cios privados, virtudes p�blicas". Da� por que a cis�o entre os interesses dos indiv�duos e os interesses da p�lis s� poderia ser representada como cat�strofe, como seria o caso em uma trag�dia como "Ant�gona".
Com o advento do pensamento liberal, a partir do s�culo 17, o crit�rio da felicidade pareceria ganhar autonomia em rela��o �s determina��es normativas da comunidade.
Pensado como portador de sistemas particulares de interesses, como agente maximizador de prazer e de afastamento do desprazer, o indiv�duo liberal �, inicialmente, algu�m que calcula os resultados de suas a��es a partir dos benef�cios oferecidos.
Ele afirmaria sua autonomia ao conservar para si o crit�rio de sua pr�pria felicidade. Mesmo um fil�sofo n�o liberal como Jean-Jacques Rousseau justificar� sua no��o de contrato social apelando � l�gica calculista dos indiv�duos concernidos. Ele n�o deixar� de dizer: "Pense nos benef�cios individuais que a seguran�a do contrato trar� a cada um".
J� a pr�pria no��o de "interesse" � elucidativa nesse contexto. "Interesse" � o nome que daremos, a partir de ent�o, �s paix�es submetidas ao c�lculo, enunciadas sob a forma de determina��es conscientes que produzem delibera��es conscientes, representa��es que poderiam ser assumidas como projetos que claramente dou para mim.
H� uma apar�ncia de fortalecimento dos foros individuais de decis�o aqui. O pensamento liberal parece fornecer a possibilidade de uma multiplicidade poss�vel de caminhos da felicidade, obrigando a comunidade a ser pretensamente neutra em rela��o a valores de autorrealiza��o, a ser pretensamente mais democr�tica em sua pluralidade de demandas de satisfa��o. Ela n�o dir� o que � a felicidade de cada um, mas, em larga medida, permitir� que cada um aja como agente maximizador de seus pr�prios interesses.
No entanto, h� de se perceber como a determina��o social, expulsa pela porta da frente, acaba por retornar pela porta dos fundos.
Pois essa pluralidade exige a internaliza��o de uma disciplina que permitir� uma verdadeira conforma��o geral dos indiv�duos pretensamente singulares.
Essa disciplina n�o est� no n�vel sem�ntico dos objetos e fins a serem enunciados, mas no n�vel sint�tico dos modos de determina��o. Na procura pela felicidade, todos os indiv�duos ter�o o mesmo modo de determina��o de suas a��es.
Eles aprender�o a calcular seus prazeres com os mesmos n�meros, a fazerem as mesmas opera��es, a afirmar seus interesses com a mesma gram�tica. Todos eles ser�o contadores de sua pr�pria satisfa��o.
Quando eles se esquecerem de tal contabilidade, n�o faltar�o discursos sociais que lembrar�o dos riscos a sua pr�pria autoconserva��o.
Nesse sentido, a felicidade aparece como o que ela realmente �. N�o exatamente um horizonte de autorrealiza��o que permitiria uma vida plena, mas uma disciplina internalizada que transfere aos indiv�duos a mesma l�gica de rendimento que operar� na vida social.
Ou seja, a felicidade tem uma dimens�o irredut�vel de l�gica social de controle e talvez haja algo de limitador em dizer que uma vida plena � uma vida exatamente feliz.
Talvez seja pensando em quest�es semelhantes que Theodor Adorno, ao ironizar a maneira com que a psicanalista Karen Horney descrevia uma rela��o afetiva "sadia" por meio de julgamentos de simetria e correspond�ncia pr�prios de quem "recebe o quanto se d�", dizia algo como: "Ao que parece, Horney confundiu rela��es afetivas com rela��es mercantis".
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