Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente Todas União Europeia

Novo filme de Emily Atef sustenta a divisão subjetiva e social

Romance entre os personagens desafia o autocontrole de ambos

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Raramente usamos a palavra indivíduo em psicanálise, pois seu significado vem de indiviso e, para Freud, somos seres divididos, em eterno conflito entre nossos desejos e sua realização. Dessa forma, a "polarização" interna —para usar um termo recorrente desde a ascensão da extrema direita— nos é estrutural.

O tratamento analítico não tem nenhuma pretensão de levar à unificação impossível, mas de permitir que reconheçamos nossa condição e inventemos formas menos sofridas e menos sintomáticas de lidar com ela. Não há busca de um suposto equilíbrio, como alguns coachings gostam de vender.

O recém-lançado filme de Emily Atef, "Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados" (2024), tem o mérito de tratar do tema em dois níveis: social e subjetivo. Baseado no romance homônimo de Daniela Krein, que junto com Atef assina o roteiro, a obra se passa no primeiro verão após a queda do muro de Berlim. Nela, acompanhamos o romance entre Maria e Henner, que desafia o autocontrole de ambos. A origem dele, um homem 20 anos mais velho que ela, remete às atrocidades nunca elaboradas da Segunda Guerra Mundial, que desembocam em seu anacronismo, seu isolamento e em sua violência.

O desejo se revela para a dupla em uma cena primorosa que nos lembra que a sexualidade humana surge como resposta ao nosso encontro com a morte. A sexualidade, para a psicanálise, é tudo o que nos ata ao corpo para além da reprodução.

Maria se oferece como objeto de forma consciente, o que a coloca, paradoxalmente, na posição de sujeito. É ela quem dá as cartas quando diz ao amante "faça o que quiser comigo". A porta se fecha aos olhos do público, para que cada espectador se vire com suas próprias fantasias. A passividade, dizia Freud, demanda muita atividade. Tema central do que se convencionou chamar de posição "feminina" em psicanálise, erroneamente confundida com a posição das mulheres. Fazer-se de objeto é jogo que independe de sexo, gênero e orientação sexual. Aqui a palavra feminino sempre se presta a equívocos.

Além de servir para uma belíssima discussão sobre o desejo e os limites de sua realização, o filme costura a paixão dos amantes com os efeitos promissores, mas também devastadores, da reunificação alemã.

Trata-se de uma Alemanha cortada a partir da ascensão da extrema direita, da derrota na Segunda Guerra Mundial e de suas terríveis consequências. Mas a chegada de um novo tempo, no caso da queda do muro, nunca prescinde de alguma perda, representada pelo desemprego, pela falta de assistência social e pela competitividade.

Maria e Henner terão que escolher qual destino dar ao seu gozo, ou seja, a uma experiência na qual o desejo desemboca em satisfação, mas também em sofrimento e isolamento. O gozo, para psicanálise revela seu potencial destrutivo. O prazer, por outro lado, permite que os laços sociais se constituam e sigam atados. Há que se fazer escolhas entre o gozo e o prazer, escolher o que se banca perder.

O Brasil é fruto do choque de múltiplas etnias, supostas como três raças, e um passado colonial comum. Longe de sonhar com um Brasil genérico e homogêneo, nossa viabilidade depende de assumirmos as diferenças —que não devem ser diferenças de valor, mas de histórias e de projeções de futuro.

Nada disso vai sem o reconhecimento de que, sem abrir mão do gozo de explorar e subjugar o outro, seguiremos entre o anacronismo e a autodestruição.

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