Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto Antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente Zé Celso

Os tempos da família

Zé Celso cultivou laços com parentes, amantes, amigos e desconhecidos

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Os melhores casamentos se fundam nos mais frágeis laços, pois, como já alertava Rubem Alves em "Retorno e Terno" (Papirus, 1992), o casamento baseado no amor é capaz de se desfazer em nome do bem do outro. Já o baseado em ódio e ressentimento pode se estender infinitamente.

Manter uma relação infeliz e odiosa responde a algumas demandas: ter alguém como desculpa de todos nossos desejos não realizados, curtir o lugar de vítima, reproduzir o casamento infeliz dos próprios pais, não ter que lidar com a inveja de ver o outro feliz ou ser invejado…

Enquanto o amor é magnânimo e visa o bem do outro tanto quanto de si mesmo, o ódio carrega uma tensão capaz de preencher uma vida isenta de graça própria. Daí que para lidar com as desculpas de casais infelizes que se odeiam, mas não se separaram "em nome" da família e da estabilidade financeira, é necessário escutar outros lugares nos quais esse nó pode estar atado.

Público, amigos e parentes fazem uma salva de palmas  no velório do dramaturgo Zé Celso, no Teatro Oficina
Público, amigos e parentes fazem uma salva de palmas no velório do dramaturgo Zé Celso, no Teatro Oficina - Zanone Fraissat - 7.jul.2023/Folhapress

Os casais que se juntam acabam por forçar o parentesco entre suas famílias de origem. Talvez adotem ou coloquem outras pessoas no mundo, gerando o fundamento de novas famílias. Mas as infindáveis combinações de relações familiares que advêm daí podem desembocar na falta absoluta de afinidade e interesse comum, haja vista o Fla-Flu familiar entre bolsonaristas e lulistas.

Mesmo rachadas, as famílias compartilham uma história comum, sejam felizes ou trágicas (em geral, são um pouco de cada um). Nas trágicas se compartilha os lutos feitos e os não feitos.

No primeiro caso, os laços têm mais chance de se estreitar pois o luto trabalhado libera a libido para circular novamente em direção aos entes queridos. Nos casos nos quais os lutos não se realizaram parcial ou completamente, o traço melancólico toma a frente e os afetos, mesmo amorosos, vêm carregados de uma tristeza que perturba o encontro.

Resta saber, para cada um, de que luto se trata. A perda de um ente querido, da fantasia de família perfeita, da onipotência dos pais, da infância idílica, enfim, muitas são as perdas não elaboradas que impedem os afetos amorosos de circularem e as pessoas de sustentarem uma convivência prazerosa.

As famílias, mesmo as mais bem resolvidas, têm seu tempo de iniciar, crescer e se extinguir, num ciclo de gerações que depende da descendência —cada vez menor— das afinidades, da história e dos lutos comuns.

Os mais velhos falecem, os mais novos se dispersam pelo mundo, dentre os quais muitos não terão filhos e, ao final, aquilo que começou como promessa de eternidade chega ao seu fim. Está aí um luto que precisa ser feito para que a família possa ser apreciada durante seu tempo de existência sem que a melancolia do fim anunciado tome a frente.

O maior risco das famílias está colocado pelo seu próprio fundamento: o modelo burguês que lhe serve de origem e norte. Nele, a família se fecha para o espaço público, controlando obsessivamente as relações que podem ou não ser agregadas ao núcleo central e tendo a manutenção do status social, do nome e do patrimônio como razão. Sua permanência no tempo pode se estender, mas o fracasso afetivo é intrínseco a seu projeto.

Essa semana vimos a família de José Celso Martinez Corrêa celebrar sua vida por ocasião de seu velório: centenas de pessoas, inúmeros desconhecidos do próprio artista, cantavam, riam e choravam à volta de seu corpo. Quantos de nós teremos ao final cultivado uma família tão linda e generosa como essa, composta de parentes, amantes, amigos e desconhecidos? Até nessa hora Zé Celso nos deixa um ensinamento.

Quando o tempo da família ensimesmada e policialesca chegar ao fim, só teremos o que celebrar. Evoé, Zé Celso!

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