Caro bebê,
É, eu sei, o útero é imbatível. Nem o hotel Burj Al Arab, em Dubai, chega aos pés de um lugar no qual a alimentação é ininterrupta e perfeitamente adequada às suas necessidades. O aquecimento central é perfeito e o toque da água vale por milhares de fios egípcios. No útero o som e luz são perceptíveis, mas abafados, fazendo um show psicodélico permanente. O máximo de sobressalto pelo qual você passava era uma descarga de adrenalina aqui e acolá, cujo teor você ignorava: tanto podia ser devido a uma assalto, quanto a uma festa de aniversário surpresa. Muito antes do homem chegar à Lua você já vivia dando piruetas sem sentir o puxão da gravidade na verdadeira piscina com borda infinita. E quando o balancê do dia parava, você sempre podia chutar uma costela até que a mãe se dignasse a mudar de posição.
Mas, como disse Marcello Mastroianni ao descrever a Cidade Eterna, cito de memória: Roma é como um útero, para viver você tem que sair dela.
É bebê, a vida, essa para a qual você e eu fomos feitos, só passa a fazer algum sentido aqui, do lado de fora. Ao sair e levar aquela lufada de ar que te encheu os pulmões, receber luz e som diretos, sentir a aspereza do toque e da força da gravidade, a interrupção do suprimento de comida é que você se deu conta de que algo inteiramente novo se apresentava. Nem vou entrar no detalhe de como a sua recepção pode ter sido boa ou ruim. O mínimo de sensibilidade seria suficiente para que imaginassem o tamanho do estresse e tentassem amenizar sua chegada. Mas, infelizmente, dentre todos, somos o povo mais bem informado e menos sábio que já pisou nesse planeta.
A graça, e nisso Marcello estava coberto de razão, é que sair do útero –seus cheiros, sabores, sons e texturas– é condição necessária para você se tornar um sujeitinho.
Você nasceu ávido, como um drogadicto em abstinência, por tudo que lembrasse o mundo que você acabara de perder. Com sorte, te deixaram ficar com quem te pariu o tempo necessário para vocês irem se recuperando do susto, mas também, ir descobrindo novas alegrias até então desconhecidas. Rostos, vozes, cheiros, temperaturas e texturas novos. A experiência de respirar, de comer, de fazer cocô…
Você foi apresentado à satisfação! Afinal, no útero nada faltava, portanto, não havia satisfação. É como um som contínuo que nunca foi cortado pelo silêncio. Ele não existe, porque sem corte, sem intervalo, ele é o próprio silêncio. Enfim, tudo isso pra dizer que a necessidade é a mãe das invenções. Inventou até você. Necessidade aqui é aquela descrita pelos Titãs, claro, de quem “não quer só comida, mas quer diversão e arte”. No seu caso, quer nome e sobrenome, um lugar na família, toneladas de paciência, amor.
Eu sei que não é fácil, mas quem disse que seria te vendeu o produto errado. A vida é essa intensidade, esses altos e baixos sem fim, essa falta seguida de satisfação –sempre parcial– que remete à falta, que busca outra satisfação...
E agora chegou o desmame, essa perda necessária que tem sido estranhamente postergada ao infinito. Tem criança de seis anos mamando em nossa cultura, na qual o seio é órgão erotizado, diferentemente de culturas tradicionais.
Não se preocupe, você perde o acesso a um corpo que nunca te pertenceu e ganha todos os sabores, as palavras, outras formas de se relacionar e expressar afetos por meio das palavras.
Não se deixe enganar pela onipotência dos adultos, você tem muito a ganhar com mais essa perda.
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