Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Na literatura concreta das periferias, heterônimos também são pessoas reais

Venâncio e Seu Nelson, num baile de máscara ou nas entrelinhas de um texto, reconhecer-se-iam

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Qualquer semelhança é mera coincidência ou heterônimo real. Das muitas formas de se construir identidade social e fazer dela a validação da existência em sociedade, há sempre, em todos e todas, um grau de dissimulação necessário. A persona, máscara cujos traços representam a consciência de si mesmo projetada para os demais, não apenas oculta. Ela modela o real até que se torne apresentável. Suportável, por assim dizer.

A literatura se fundamenta no que escreve o cotidiano e ele, sarcasticamente, capitula suas fabulações. Qualquer semelhança é mera coincidência ou heterônimo real.

Venâncio tem nome antigo. A sustância da pronúncia lhe dá o peso do tempo passado num Nordeste por ele não vivido. De lembrança tem como retrato o sangue misturado à poeira de seus ancestrais. Um nome saído da garganta seca da caatinga. Longo fôlego dos antigos.

As mudanças climáticas poderão transformar a vegetação da Caatinga, tornando-a mais esparsa e rasteira até 2060
A caatinga - Giancarlo Zorzin

Para morar em outro lugar teve que ser lugar outro para si. A cidade grande quase o engoliu, só não porque o rapaz aprendeu desde criança a ter a tal educação. Na casa dos outros, enquanto a mãe limpava, ficava no canto, parado, mudo, sem poder dizer nada. Se ofereciam migalha, rejeitava —senão pensariam que em casa faltava comida. Se brincavam os filhos da patroa, Venâncio observava e lhe restava apenas a voz dentro de sua cabeça a lhe torturar com vontade de criança pelando as ideias. "Por que não danço eu também?" Permanecia com a tal educação, a que ensina a se anular.

Depois de grande, Venâncio continuou mudo e no canto. Quem o via achava que era daquele jeito mesmo, criado para ser anacrônico, um nome antigo entre Enzos e Valentinas sem nada de novo a dizer. O que não viam era o esforço para simular passividade e conformismo enquanto dissimulava a mente afiada a passar o fio levemente pela garganta da pobreza imposta. Ria quando não queria rir e por isso não dava ao outro sorriso sequer. Concordava quando estava totalmente em desacordo. Vestia-se de errado e deixava o outro desfilar como certo.

A cidade grande - Danilo Verpa/Folhapress

Venâncio, antes de dormir, relembrava de tudo o que não fez enquanto algo fazia. Reconhecia, a cada autobiografia torpe entregue a quem lhe espoliava o sangue —aquele com poeira—, o quanto de Venâncio não constava ali. Para sobreviver, todo dia era preciso se parir novamente, fazer o corre pelas próprias veias e se batizar com nome antigo. Assim não se esquecia Venâncio.

Seu Nelson. Dono do mercadinho da vila. Não puxa papo com cliente. É sério, bom de conta e tinha no rosto o mapa do desgosto feito de pontos cardeais que traçavam rotas rumo ao "bom dia" sem coração. Pelo menos era isso que Seu Nelson vendia de graça: a cara de poucas ideias. Tinha muitas, na verdade, mas as compartilhava só com a família.

Não gostava do bairro. Dizia só ter maloqueiros nele. Era dado à tradição, mas queria algumas mudanças retrógradas, como um futuro em que o suplício se tornaria pena de morte. Isso porque só ele sabia do custo de ser assaltado. Anacrônico, seu Nelson, do balcão para fora. Para dentro, paradoxal, beirando o comum.

Quando a polícia parava em seu estabelecimento, tinha sempre um ou dois nomes para serem investigados. Às vezes, depois de um tempo, sumiam. Seu Nelson não tinha pena porque sentia que dele também ninguém tinha.

Criou os filhos com dinheiro do seu trabalho e do trabalho dos demais da vila. Quando ficava sem troco, fazia esforço hercúleo para se desculpar com o cliente maloqueiro cujo nome era "Venâncio" e deveria ser investigado. Seu Nelson, quando olhava para si e não mais se perdia nas longitudes e latitudes de uma descendência localizada no sul europeu, recordava-se do sobrenome. Seguro de si, carregava a certeza de que, por mais um dia, não tinha deixado transparecer quem era —bom demais para morar ali. Fechou a cara e o comércio. Assim se lembrava seu Nelson.

Venâncio e Seu Nelson, estivessem eles num baile de máscara ou nas entrelinhas de um texto, reconhecer-se-iam. Na tentativa de serem para o outro tudo menos eles mesmos, revelam-se heterônimos reais. Coincidências semelhantes.

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