Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Ainda hoje 'Os Condenados da Terra' se mantém atual

Escravidão é desumanização, seja na colônia francesa, seja no Rio Grande do Sul

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Enquanto os olhos corriam tentando acompanhar os passos descalços a queimar chão, no imaginário subia a fumaça densa que nublava o céu e sufocava a fazenda. A queda era inevitável, se não fosse pela brasa, seria pelo veneno. Uma mistura antiga, trazida com o pouco que foi possível esconder debaixo da língua-mãe, batizava a água com sentença irreversível —morte aos colonos, aqueles que ontem jogaram aos cães pedaços de africanos para que o gosto pelo seu sangue se tornasse instintivo.

Pelas páginas de "Os Jacobinos Negros", o longe, no tempo e no espaço, ficou perto. Tão perto que foi possível perceber o quanto pelou o Haiti colonizado e ardem até hoje os resquícios do imperialismo europeu, principalmente ao se pensar no mundo do contemporâneo trabalho. Novas formas de exploração, elaboradas para serem menos rústicas, mais sutis, falham na arte da camuflagem e são desmascaradas nas capas de jornais como análogas à escravidão. Análogas? São escravidão.

Haiti, em seu processo de libertação, tem a marca de intensas lutas contra o imperialismo francês e seu apego obsceno por colônias. Tornou-se referência nas Américas e fora delas. Aqui ou na África, a face dos levantes por liberdade enfrentou maniqueísmos dos quais se beneficiavam os colonizadores europeus ao tentarem dividir escravizados —autóctones ou não— entre "dóceis e indomáveis" e que, sobretudo, conduziu a massa explorada à união para fins de sobrevivência. Liberdade não garantia vitória, entretanto. No máximo, a chance de continuar em luta.

gravura em preto e branco registra as cenas de um massacre, onde pessoas negras assassinam pessoas brancas. ao fundo, estão as fumaças do incêndio na ilha
Gravura "Incêndio da Planície do Cap / Massacre dos Brancos pelos Negros", de Martinet, registra a revolta dos escravos no Haiti - Biblioteca Nacional da França (Gallica)

Ao encerrar as páginas da memorável obra de C.L.R. James, outra me veio à mente se tratando do contínuo combate ao colonialismo a partir do entendimento de suas complexidades: "Os Condenados da Terra", de Frantz Fanon. Se Toussaint L’Ouverture, revolucionário incontestável, ainda assim relutou em romper laços com a França, o psiquiatra e filósofo nascido na Martinica passou o fio da navalha sobre qualquer vínculo que poderia ser mantido com colonos. A libertação viria da cisão e, equivocadamente, muitos entenderam ser tal constatação uma ode à violência.

Desumanização. Matéria-prima do processo de colonização. Ao longo de seus textos, Fanon descreveu e criticou o imperialismo europeu e seu criminoso processo de colonização, ao passo em que retratou a perspectiva dos colonizados e "pós-colonizados" que viviam nas áreas rurais e não tinham as mesmas "vantagens" dos habitantes das cidades —submersos na exploração velada. De todas as pontuações feitas pelo autor, neste texto se destaca a que reflete o agora, o atual. Há sinais mais do que evidentes de que no capitalismo prolifera o neocolonialismo. Na concepção de uma nova forma de colonização se fecundou a escravidão moderna.

Fanon disserta, entre outros temas, sobre os explorados do campo e da cidade. Cita as periferias rurais e urbanas, a distância não só geográfica, mas política e cultural, e como essa separação dificulta a real —e organizada— forma de resistência ao que chama de burguesia dos países subdesenvolvidos.

Paralelamente, avalia a camada de "intelectuais colonizados" que atua em partidos políticos ditos críticos à exploração, porém limitados à ineficiência prática de suas militâncias restritas às retóricas reformistas. No fundo e para o fundo, reserva-se a pacífica violência de uma nação que assimila a miséria dos explorados à sua democracia.

Mais de 12 horas de exploração. Violência física e psicológica. Destituição da dignidade. Desumanização. Matéria-prima mais nova do familiar processo de colonização. É o vinho, é o caixote de bebidas, é o quartinho de empregada dormido por 30, 40 anos sem direito ao mundo fora do condomínio? Há que se pensar no uso do termo "análogo" diante de algo que, na essência, é o mesmo e não simplesmente semelhante.

Escravidão é desumanização. Seja na colônia francesa ou no Rio Grande do Sul, na senzala ou no galpão de bebidas, é o mesmo —exploração do outro tido como menos humano, indigno. Hoje, ainda escravo.

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Armas apreendidas em Bento Gonçalves durante operação contra trabalho escravo - PF/Divulgação

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