Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Martinho da Vila é um dos músicos mais amados e importantes do Brasil

Conheci o artista há duas décadas e desfilamos juntos na Sapucaí, onde a Unidos de Vila Isabel o homenageou

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O Carnaval deste ano não foi igual àquele que passou. Depois de dois anos na maior secura, sem folia, geral caiu dentro do samba, sem máscara, sem medo da pandemia.

No Rio de Janeiro, eu fui na onda da maioria. Pela primeira vez –depois de dois anos– abandonei o suporte de proteção, e fui pra dentro do mundo da Sapucaí, no Sambódromo, sem medo de ser feliz.

Desfilei em duas grandes escolas de samba, entre elas, a Beija-Flor de Nilópolis, sob o comando do vozeirão de Neguinho da Beija-Flor, com o enredo "Empretecer o Pensamento É Ouvir a Voz da Beija-Flor" —composição de J. Velloso, Léo do Piso, Beto da Nega, Júlio Assis, Manolo e Diego Rosa, que tem versos como esses, de arrepiar: "A nobreza da corte é de Ébano/ Tem o mesmo sangue que o seu/ Ergue o punho, exigir igualdade/ Traz de volta a que a história escondeu...".

baiana veste saia em que estão estampados rostos de pessoas negras
Baiana no desfile da escola Beija-Flor de Nilópolis na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro; saia homenageia a obra 'Parede da Memória', da artista Rosana Paulino - Eduardo Hollanda - 23.abr.2022/Divulgação

O tema da negritude, com foco na história e na religião de matriz africana, dominou o Carnaval fora de época de 2022. Mas, ao que parece, veio para ficar. Ele vem tomando corpo nas quadras e na passarela do samba faz alguns anos. Em 1988, ano do centenário da abolição da escravatura no Brasil, a Unidos de Vila Isabel ganhou o carnaval com "Kizomba: Festa da Raça".

Naquele Carnaval, com a maestria da Ruça, então presidente da escola, os carnavalescos Milton Siqueira, Paulo César Cardoso e Ilvamar Magalhães, o dono do enredo vencedor, Martinho da Vila, imprimiu algo que levantou as arquibancadas e fez curvar os jurados em reverência – através da melodia do samba composto por Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila, este, como Martinho, carregando o nome da escola.

"Kizomba", palavra que vem do idioma kimbundo, falado em Angola, significa confraternização da raça negra. Acaba por ser o ancestral do Carnaval vencedor da Mangueira –"História para Ninar Gente Grande", de 2019– que contou a história da resistência de negros e índios brasileiros nos últimos 500 anos.

Aliás, um parênteses: o enredo vencedor da Mangueira dialoga, pelo menos no seu título, com o pequeno romance publicado pela escritora mineira Conceição Evaristo um ano antes, "Canção para Ninar Menino Grande" (Editora Unipalmares). Conceição, por sinal, foi umas das intelectuais negras homenageadas pela escola de Samba de Nilópolis, e veio sentada em um trono, de carro alegórico, imponentemente vestida de fardão azul com tons em dourado, simbolizando um membro da Academia Brasileira de Letras.

No geral, a temática que tem sido abordada nos últimos carnavais –tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo– tem se pautado com frequência na história de personagens oriundos da escravidão ou afrodescendentes em seus enredos. Este ano de 2022 não foi diferente.

É de se notar que embora seja o ano da passagem do bicentenário da independência, pouco ou nada se falou sobre a efeméride, ao contrário do ano do centenário da proclamação da República, quando se sagrou campeã a agremiação carnavalesca Imperatriz Leopoldinense, do bairro de Ramos, com o enredo "Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós".

Mas eu me emocionei igualmente com a homenagem que a Unidos de Vila Isabel prestou ao seu mais famoso e ilustre componente: Martinho José Ferreira, o conhecido Martinho da Vila.

O popular cantor e compositor, autor de muitos clássicos para a própria escola, tidos como hinos, é tema do enredo da agremiação da terra de Noel Rosa. A azul e branco levou para o Sambódromo da Marquês de Sapucaí o enredo "Canta, Canta, Minha Gente! A Vila é de Martinho!".

Última escola a desfilar na madrugada de 23 de abril, entre a noite de domingo e a segunda-feira, a escola empolgou o público, que apesar da hora, ainda lotava todas as arquibancadas, frisas e camarotes da passarela do samba.

O samba, composto coletivamente por mestres conhecidos e outros nem tanto, mas integrados –como Dudu Nobre, André Diniz, Professor Wladimir, Evandro Bocão, Wanderson Pinguim, Marcelo Valença, Leno Dias e Mauro Speranza—, tinha versos com esta entonação: "O dono do palco, o Zumbi lá do morro/ Pela 28, chinelo de dedo/ Se a paz em Angola lhe pede socorro/ Filho de Teresa, encara sem medo".

Conheci Martinho da Vila há duas décadas. Há uns dez anos nos tornamos amigos inseparáveis. Nos falamos praticamente todos os dias. Produzimos livros juntos. O último, lançado na semana passada, no Rio de Janeiro, eu ajudei a editar e fiz a curadoria. Chama-se "Contos Sensuais e Algo Mais" (Editora Patuá). Acabou de entrar nas livrarias.

Conversamos sobre todos os assuntos. Quando completou 80 anos, em 2018, criamos a Confraria do Martinho, que conta com outros dois confrades: Eloi Ferreira, ex-ministro da Igualdade Racial do governo Lula, e Edmilson Valentim, ex-deputado federal.

Esse grupo, que se reunia toda semana presencialmente antes da pandemia, passou a ser reunir online, cada qual com uma taça de vinho tinto, quando falamos sobre cultura, política, economia e da vida alheia. No geral, ouvimos as incríveis história de uma pessoa incrível, um ser humano extraordinário, que não guarda ódio nem rancor, e está sempre de bem com a vida.

Martinho da Vila é um ensinamento constante. A partir de 2019, inventamos de escrever um livro, todo baseado em correspondências enviadas pelo correio e escritas à mão.

A pandemia interrompeu nossas pretensões logo no início, quando tudo estava ficando bem divertido. Passados alguns meses, retomamos a tarefa virtualmente, por email, e, em breve, vamos trazer a público o "Notívagos" (ainda sem editora). São cartas trocadas entre dois amigos que se identificam, embora eu seja bem mais novinho do que ele. Mas sigamos!

Quando, na madrugada de domingo (23) para segunda (24), fui desfilar com o amigo na Sapucaí em justa homenagem que a Unidos de Vila Isabel fez a ele, eu me emocionei. Vi um Martinho completamente feliz, jovem, antenado com o tempo atual, completamente inspirado.

Tudo nele é música, até mesmo quando pensa de forma literária, para escrever seus livros, que já são quase 20. Somos colegas na Academia Carioca de Letras, ele foi meu cabo eleitoral. Um luxo.

Não há como não admirá-lo. Martinho da Vila, sigamos amigos, com muita honra para mim.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmou incorretamente que Martinho da Vila é autor do samba "Kizomba". A música foi composta por Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila.

 

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