O psicanalista Paulo Schiller, tradutor deste "A Bíblia", do húngaro Péter Nádas, escreve na orelha do livro que ao tomar conhecimento da breve obra (são 112 páginas, não é genial lançar um livro tão fininho com esse nome?) e da sua "infinidade de temas" sentiu-se diante de uma preciosidade, dessas encontradas em pequenas embalagens.
Apesar de ter finalizado o livro em poucas horas, passei dias com um maravilhamento parecido. Pensando que seria injusto que uma joia dessas acabasse escondida nas livrarias, em meio a ofertas fisicamente mais robustas.
Péter Nadas, um dos mais importantes romancistas da atualidade (cogita-se há um tempo seu nome para o Nobel de Literatura), escreve as memórias revisitadas de Gyurika, um garoto na pré-adolescência que vive com os pais e os avós maternos na Hungria socialista (1949 a 1956).
Seus pais ocupam cargos importantes no ministério e a família mora no alto de uma colina, em uma mansão com seis quartos, pilares de mármore, um vasto jardim, serviçais e um "portão de ferro monumental". Contudo, não é à toa que o autor decide começar o texto nos contando que a fachada da casa imodesta é "magistralmente escondida".
A avó cuida da casa como uma governanta e não reclama do serviço, pois, apesar de idosa e acima do peso, "era habituada ao trabalho". Todo o privilégio da família está inserido em um contexto de escassez e era preciso passar horas se acotovelando em filas para trazer para casa apenas dois ovos.
O garoto perambula com certo tédio e desgosto, notando que os poucos móveis da vida de antes se perdem nos novos e imensos espaços. Mas isso começa a mudar a partir das transformações sexuais típicas da sua idade e de todos os afetos descontrolados que caminham lado a lado com a recém-adquirida excitação.
Assim ele se esconde para assistir ao banho da jovem empregada Szidike "até que a percepção atravessasse o anteparo do susto" e deseja se aproximar da garotinha da casa vizinha: "Ao ouvir o nome Éva, desci do sótão às pressas; me dirigi diretamente para o armário de meu pai e tirei algumas gravatas. Não conseguia imaginar um encontro de outro modo que não fosse de gravata".
Ao ferir gravemente seu cão, Gyurika está às voltas com o susto de uma brutalidade sem precedentes, mas também tenta se acomodar psiquicamente a uma sensibilidade ainda a ser explorada e que o faz notar, por fim, a gritante (e até então posta como sutil) diferença que o separa, como filho privilegiado de comunistas, da serviçal que vive em condições miseráveis no campo, lê a Bíblia e ostenta um crucifixo no pescoço.
É ele quem nos conta, sem interpretações excessivas, mas com a dose certa de desvelamentos para aguçar nosso interesse, dos furos de discursos de sua família: insistem que a empregada é como alguém da família, portanto deve se sentar à mesa, mas dão o pior lugar para que ela se acomode.
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