Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi

Sua filha tem problemas?

Tem sempre alguém tentando explicar o escândalo que minha filha deu na loja

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quando engravidei, aos 38 anos, a primeira coisa que um obstetra me disse é que eu era uma grávida geriátrica e que, portanto, deveria colher todos os exames possíveis para ter certeza que minha filha não nasceria com problemas. Falou ainda que era bom correr "para eu ter tempo hábil de resolver o que faria diante dos resultados".

Quando minha filha tinha apenas três dias de vida, uma pediatra me disse que a boca dela tinha uma condição qualquer e que, por isso, ela não estava sugando direito o meu peito. Apavorada, gastei fortunas desnecessárias com doulas, fisioterapeutas e enfermeiras da amamentação. Tudo isso enquanto Ritinha mamava e crescia felizona.

Quando Rita tinha menos de um ano, "amigos" me garantiram que ela teria problemas no desenvolvimento motor. A apressadinha não havia engatinhado a quantidade exata e perfeita de dias, horas e segundos previstos por alguma cartilha maluca.

Bebê chorando
Bebê chorando - Spass/stock.adobe

Depois, começou o tormento dos parentes me indicando fonoaudiólogos porque com 13 meses, 16 dias e 4 horas ela já deveria falar 14 palavras e não 6 palavras e meia. Uma tia garantiu "quanto antes você trabalhar o atraso dela, melhor para cognição em vida adulta". Em seu aniversário de dois anos, porque Rita conseguia falar frases inteiras, mas alguns verbos estavam no tempo errado ou o conteúdo como um todo não apresentava ironias complexas, recebi 3 links sobre afasia.

Quando Rita tinha dois anos e meio, fui sozinha com ela a uma festa de aniversário de uma amiguinha da escola. Tímida e ainda pouco sociável por conta da pandemia, minha filha quis ficar grudada em mim e pediu colo várias vezes. Outras crianças da sua idade, criadas com irmãos e primos mais velhos, estavam correndo pelo jardim da casa. A mãe de uma das coleguinhas, cujo nome eu nem lembrava, pediu licença, se aproximou, e com "muito cuidado" me alertou: era bom procurar um neuropediatra especialista em autismo. "É difícil encarar, eu sei, mas quanto antes, melhor."

Eu acompanho, ao lado de algumas amigas queridas e seus filhos perfeitos, tudo o que um tratamento correto pode fazer por crianças autistas. Mas por que um bebê pedindo colo agora é motivo de olhares estranhos em festas?

Chorei por 24 horas. Não sabia se era preocupação ou solidão. Desde que me tornei mãe, mesmo ela tendo um pai excelente e avós ótimos, eu passei a me sentir muito sozinha. Na verdade, eu acho que eu sempre me senti assim e a maternidade (sobretudo sendo mãe de uma menina) só evidenciou a minha vertigem particular diante da imensidão da vida. Até que entendi que aquele meu choro era ódio mesmo.

Desde bebezinha, minha filha tem acessos de raiva quando é contrariada. Com meses de vida, quando alguém atrapalhava a sua hora de mamar, ela largava o bico do meu peito, se entortava inteira (mesmo não tendo ainda pescoço rígido para isso) e fuzilava o meliante com os olhos.

Meu instinto materno, ainda que soterrado por tantas opiniões, livros, cursos e especialistas, sempre comemorou a personalidade exuberante de Ritinha, mas há quase cinco anos ouço que preciso procurar ajuda.

Tem sempre alguém tentando explicar o escândalo que minha filha deu na loja porque eu topei comprar o unicórnio que mija arco-íris, mas achei demais comprar também o unicórnio que caga arco-íris: deve ser transtorno de déficit de atenção ou transtorno de déficit de atenção com hiperatividade ou bipolaridade ou síndrome do imperador ou transtorno opositivo desafiador.

Tem horas que estou tão cansada e vulnerável que ligo para a terapeuta infantil: "Tem certeza que...". E a Luciana responde com a boca cheia: "Vamos ter que decepcionar os tarados por síndromes, mas ela não tem nenhuma".

Às vezes penso que nascer mulher, aos olhos de todos, já é nascer escancarando, sem querer, um jogo dos sete erros. E olha que começaram as apostas quando ela era ainda apenas um feto.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.