Um pai que está “grávido da esperança” de rever o jovem filho. Uma mãe que sofreria uma espécie de “parto às avessas” ao perder o seu menino em um acidente. Um tio que vislumbra no sobrinho um potencial escritor: “ele quer mais dessa comida, sinal de que esse mundo não lhe basta”.
Uma irmã que, ao cruzar a sala, não arrancava sequer um “gemido do assoalho”. Um garoto que observa os pais brigarem sem saber qual deles atirou a primeira “palavra- fósforo”. Um filho que nota as roupas da mãe recém- divorciada em uma sacola de feira (em vez de uma mala) para “disfarçar o nosso êxodo”.
Nos 14 contos de “Tramas de Meninos”, as relações podem parecer frágeis, “por um fio”, mas cada palavra escolhida pelo autor João Anzanello Carrascoza é imponente e bem amarrada, o que resulta em um conjunto emocionante, trágico e impactante.
São histórias de pais e filhos, irmãos, casais apaixonados, brigas e um certo exagero relacionado a mortes (aqui o livro chega a incomodar um pouco). A voz que sobressai nas narrativas, apesar da variedade de gêneros e idades, é a de um garoto abismado pelas finas tramas das relações humanas e que se diz “imaturo para a compaixão”.
Alguns contos são tão brilhantes que destoam de outros menos inspirados (que claramente servem de base para o entrelaçamento das histórias e talvez como fôlego para voos mais altos), mas apesar dessa irregularidade durante a leitura é possível colecionar frases-porrada como: “[...] quem espera jamais tomará o lugar de quem vai chegar”; “[...] um abraço ligeiro, os corpos a fugir um do outro, porque, quando estamos plenos de alguém, um simples abraço pode nos fazer transbordar, rompendo o equilíbrio alcançado, aflitivamente, graças aos vazios que a separação e os dias nos deixam”; “Boa noite, pai; Boa noite, filho; e era assim o reencontro, quase um nada, não fosse eu me sentar na poltrona da sala, no escuro, para ouvir o rumor de sua respiração —uma vida gerada por outra e que, então, em sentido inverso, também gerava a anterior”.
Em “Começo”, conto que abre o livro, um pai narrador já sente o vazio e a saudade do filho algumas horas antes de ele partir. Em “Últimas”, que encerra a obra, temos notícia, em terceira pessoa, de um outro pai (ou seria o mesmo? Ou seriam todos?), que é pego de surpresa quando o filho avisa que está indo vê-lo “agora”. Mas por que ele está demorando tanto? Todos os narradores, íntimos, pessoais, distantes, memorialistas, instantâneos, esperançosos ou sobreviventes, todos amam demais e por isso sofrem o tempo inteiro.
A sensação que fica após a leitura é que as coisas mais importantes da vida podem acabar na mesma velocidade que essas breves páginas.
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