Dizem que a dor é psicológica: depende do estado mental. De fato, depende, e a tal ponto que é possível ignorá-la solenemente. Mas se há dor, é porque corpo ou mente foram rasgados, partidos, queimados, destruídos de alguma forma —e a dor está lá, seja ela sentida ou não.
Às vezes é porque o cérebro está mais ocupado com algo absolutamente urgente. No auge do estresse agudo, aquele problema imediato que precisa ser resolvido a-g-o-r-a, os sinais do estrago são bloqueados e não ganham acesso à atenção ou percepção consciente: o dano está feito, mas a sensação do estrago só se nota depois, quando passa o estresse. Acontece com atletas em plena competição, mas também com cidadãos comuns que absolutamente tem que terminar um trabalho, cumprir um prazo, ou garantir a segurança dos filhos.
Outras vezes, contudo, é porque a causa da dor não é resolvida, e passa a ser tão constante que o cérebro nem dá mais bola. Dia após dia, a sensação de dor vira o novo normal.
Porque assim é o cérebro: os neurônios que o compõem são maquininhas de detectar mudanças e variações, não constantes. Como, além disso, neurônios estão eternamente se recalibrando de acordo com a realidade da sua atividade, o que não muda ao longo do tempo se torna invisível ao cérebro conforme é incorporado à eternamente reajustada definição de "normal".
E assim a dor crônica deixa de ser registrada. As costas moídas, a solidão do lockdown, tudo continua lá —mas a vida segue. A gente se acostuma até com o que já foi intolerável.
Mas o motivo da dor se mantém lá.
Até que um dia —seja por acaso, epifania, inspiração divina, anti-inflamatório, fisioterapia ou esforço de cientistas que produzem vacinas em tempo recorde e o governo faz a sua parte de providenciar acesso e distribuição— a fonte da dor é debelada.
E a gente descobre que estava, esse tempo todo, segurando a respiração. Aguardando o impacto final. Funcionando em modo sobrevivência, tolerando a puxação do bandeide que segura as pontas da pele, aguentando a dor dos pontos que não deixam o corpo se rasgar e as entranhas saírem.
Até que o anti-inflamatório faz efeito. Abraçar nossos pais vacinados não é mais coloca-los em risco de morte. O bandeide é arrancado, e os pontos, removidos.
O cérebro respira, aliviado.
Doía, e a gente não sabia.
Com sorte, a memória da dor não vai embora, e nossas promessas de nunca mais se deixar cair em situação semelhante têm alguma chance de sucesso.
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