Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Suzana Herculano-Houzel

São tantas possibilidades

Meu pai não é neurocientista, mas treina todas as capacidades cognitivas na mesa de jogos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Santo teste de detecção de Covid, que me permitiu entrar com meu filho num avião ao fim das minhas aulas e vir ao Brasil ver meus pais sem medo de eu ser a causa de eu não os ver de novo.

Testes repetidos e devidamente negativos, é hora de fazer o que a nossa família faz melhor: se reunir ao redor da mesa para papear manuseando 52 pedaços de papel coloridos e numerados. É uma tradição da minha infância que começou com minha tia-avó e já se perpetua com meus filhos, devidamente instruídos por meu pai: jogar baralho.

Dado um conjunto de regras, o número de combinações possíveis das 13 cartas de quatro naipes em uma rodada até é calculável, mas isso não torna o processo menos interessante.

Importa quem segura cada conjunto de cartas, sua disposição, seu temperamento, suas experiências anteriores, os macetes já aprendidos, os hábitos conhecidos dos outros. Importa o estado mental de cada um: atento e presente no jogo, distraído ouvindo o noticiário ao fundo, pensando na agenda do dia seguinte. Importa a ordem dos fatores: depois da minha mãe, e portanto na secura porque ela não deixa passar descarte, ou antes e, portanto, com a possibilidade de fazer o mesmo com ela?

Cartas que estavam a bordo do Titanic e que foram a leilão na Sotheby's - France Presse

Mas, então, mal os jogadores acabam de entender como os outros funcionam, encontram um ritmo, e fecham uma partida, e um de nós propõe uma troca de jogo. As cartas são as mesmas 52 --mas agora as regras de uso vão do mais ou menos parecidas ao radicalmente diferentes. O buraco, de sequências e trincas, vira sueca, com um naipe flutuante de trunfos, que vira ralé, que é um jogo puramente de malícia social, que vira pontinho, que é um buraco comunitário, que vira nickels, que é uma versão relâmpago e de poucas cartas do pontinho, que vira espadas, uma versão da sueca baseada em contratos e não pontos.

Dá para sentir o cérebro pedindo um momento de reinicialização entre jogos, quando abre o novo número de cartas na mão e já vai arrumando as cartas no automático, para então se dar conta de que as regras mudaram. As cartas são as mesmas, mas o objetivo é outro, o que requer esvaziar a mente do que ia virando automático, recalcular possibilidades, traçar nova estratégia e se lançar no novo projeto, sempre levando os outros em consideração —inclusive suas boas e más intenções.

Ou seja: meu pai, economista jogador de pôquer, não estuda como o cérebro funciona, mas assim mesmo treina todas as capacidades cognitivas das crianças da família ao redor da mesa de jogos. E ainda nos ensina desde cedo a pegá-lo trapaceando. Acho que o neurocientista é ele...

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.