Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Chuvas no Sul

Das fake news aos falsos cognatos

Crise da democracia pode ser enquadrada como uma crise de linguagem

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No surto oportunista de fake news que veio na esteira das inundações no Rio Grande do Sul, o mais difícil de compreender não é a motivação de quem se dedica a fabricar mentiras em série para, à custa de vidas, tumultuar as ações do Estado e tirar proveito político da tragédia.

Essa motivação pode parecer alienígena a pessoas de boa-fé que conservam em estado funcional seus circuitos básicos de compaixão, humanidade e senso comunitário. No entanto, trata-se de uma conduta reconhecível e de certa forma até banal.

Estamos falando do velho banditismo, da ancestral pistolagem, ação criminosa de quem devia estar na cadeia –e, se um dia conseguirmos dar jeito em nosso país, estará. Nunca faltou gente ruim na história da espécie.

Bem mais difícil de compreender é por que tais formas grosseiras de desprezo à vida e à dor são acolhidas por tantas pessoas que não são, elas mesmas, bandidas, e que se acreditam movidas pela vontade sincera de consertar o que está quebrado na sociedade.

A imagem mostra uma ilustração estilizada e antropomórfica da expressão "Fake News". As palavras "FAKE NEWS" são representadas em letras grandes e amarelas, com braços e pernas pretos, e usando óculos escuros. A figura segura um smartphone com a mão direita e faz um gesto de 'paz e amor' com a mão esquerda. Acima dela, há uma fala em uma nuvem de diálogo que diz "Quem me conhece sabe a verdade." No canto inferior direito, aparece a assinatura "MOR".
Claudio Mor/Folhapress

Embora ambos os lados contribuam para a letalidade do fenômeno, os fabricantes de fake news e a grande massa que as consome e ajuda a propagar habitam reinos morais distintos. Há entre eles a diferença que há entre manipuladores e manipulados, entre a turma do berrante e o gado.

A distinção é fundamental para começarmos a compreender essa praga contemporânea que é a indústria da mentira, uma das armas mais poderosas com que a extrema direita vem fazendo estragos no tecido democrático ao redor do mundo.

Obrigar as redes sociais a se responsabilizarem pelas lorotas, calúnias e injúrias nelas veiculadas pode ser um caminho justo e inevitável, mas será insuficiente enquanto nada for feito para drenar o solo psicossocial pantanoso em que o vírus das fake news prosperou.

Vamos nos entender: o uso político da mentira é tão antigo quanto a história da humanidade. Maria Antonieta nunca disse que, na falta de pão, o povo devia comer brioches. Esse bolinho foi tão bem assado no forno aceso pela Revolução Francesa que até hoje vende direito.

A novidade do nosso tempo são os meios eletrônicos de escoamento e reprodução em rede dos discursos maliciosos. Mesmo a tecnologia, porém, não seria capaz de propiciar tamanho poder de destruição se não encontrasse uma sociedade em profunda crise de valores.

A crise é da democracia, mas pode ser enquadrada em termos de uma crise de confiança e de linguagem. Por razões compreensíveis, muita gente não acredita em mais nada do que dizem os políticos.

Ora, toda linguagem se funda num pacto. Falante e ouvinte precisam estar de acordo sobre certas coisas antes que a palavra "picolé" possa ser trocada entre eles com o sentido de... picolé.

O rompimento do acordo, estimulado por políticos que se apresentam espertamente como "antipolíticos", se dá quando a perda de confiança no emissor da mensagem leva alguém a suspeitar que a palavra "picolé" pode significar tudo, de samambaia a fuzil –menos picolé.

Cria-se assim uma situação em que as partes falam línguas diferentes. Não inteiramente distintas, como português e grego, mas semelhantes o suficiente, como português e espanhol, para que se multipliquem os falsos cognatos –aquilo que parece ser uma boa tradução da realidade, mas é uma pista falsa.

As fake news são falsos cognatos interessados, forjados com método e sob medida para um mundo em crise.

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