Está rizz de quê? Não tem graça nenhuma que o dicionário Oxford tenha escolhido uma gíria internética recém-nascida como Palavra do Ano: "rizz", forma abreviada de "charisma" (carisma), uma das novidades que calharam de viralizar em 2023.
Se não estivéssemos falando de um ano como o que termina, em que os ponteiros do relógio do apocalipse aceleraram de forma inequívoca, talvez a futilidade fosse passável. Enquanto as bombas israelenses subtraem Gaza do mapa, a IA começa a tornar obsoleta a mão de obra humana e as calotas polares derretem –aí é outra conversa.
Todos sabemos que o escapismo, o hedonismo e o oba-oba diante da catástrofe são velhos conhecidos da humanidade. Isso não obriga ninguém a, como diz o outro, bater palma pra maluco dançar.
Tradição midiática da língua inglesa que o Oxford abraçou em 2004, a escolha de palavras do ano nunca teve grande importância no debate público. No entanto, costumava exibir um certo carisma e alguma preocupação em iluminar a realidade por meio de vocábulos em evidência.
Sua decadência é sintoma de mudanças profundas no modo de funcionamento do mundo. Há uma razão para que, pela segunda vez consecutiva, o mais prestigioso dicionário da principal língua contemporânea eleja como palavra-síntese do ano um modismo digital com pinta de descartável.
Em 2022, como ninguém deve se lembrar, o título coube à locução "goblin mode" –em tradução literal, "modo duende". Segundo definição do próprio dicionário, um estado de espírito em que se rejeitam "as expectativas que a sociedade deposita sobre nós, em favor de fazer o que se quiser". (Inserir aqui um emoji de olhos arregalados.)
A explicação é que, desde o ano passado, está terceirizada para o voto popular uma escolha que até então era feita por um grupo de linguistas e lexicógrafos. Eis o modo mais garantido –e covarde– de trocar conhecimento por populismo.
Pobre Oxford. Como todo mundo hoje em dia —pessoas físicas e jurídicas, sem nenhuma exceção para instituições centenárias—, é claro que se sente refém das caprichosas redes e seus memes. Esmerando-se em bajulá-las, tenta escapar da morte ou pelo menos retardar sua agonia.
Nessa democracia digital direta, podemos ter certeza de que sua palavra do ano jamais voltará a tocar em nervos expostos como fez em 2007 ("pegada de carbono"), 2016 ("pós-verdade") e 2019 ("emergência climática").
Não deve repetir nem mesmo a elegância de suas tentativas anteriores de piscar para os novos tempos, como na eleição de "selfie" em 2013 e na de um signo não verbal, o emoji que chora de rir, em 2015.
Comentando há dias a escolha de Taylor Swift como Pessoa do Ano da revista "Time", meu colega de Folha Tony Góes observou com razão haver ali "algo de ganancioso e covarde": "A edição impressa da revista sairá com quatro capas diferentes, na esperança de que os ‘swifties’, os fãs ardorosos da artista, comprem todas".
Não sei se tal objetivo comercial foi atingido, mas o paralelo com o caso "rizz" é claro. Esnobado pelas novas gerações, um representante do Ancien Régime da comunicação se ajoelha diante dos jacobinos, se não para esgotar tiragens, para convencê-los de que tem "rizz". Quem sabe assim o poupam da guilhotina.
Ao se curvar à lógica das redes, o dicionário Oxford acaba por abalar um dos pilares que o sustentam: a compreensão das palavras como veículos de pensamento crítico.
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