Treta do bem: tivemos há pouco um bom debate sobre escrita e linguagem. O escritor Ruy Castro publicou nesta Folha a crônica "Escrever bem" (28/9), na qual dá um toque precioso: escrever é reescrever. E cortar:
"Reescrever consiste em expurgar o desnecessário. Se um adjetivo não servir de alimento ao substantivo a que se acopla, um dos dois está errado. E há os advérbios de modo que, automaticamente (epa, olha um!), se intrometem no texto e, geralmente (outro!), podem ser apagados sem prejuízo".
O escritor Julián Fuks respondeu —ou pareceu responder, embora Ruy não seja citado— no UOL, pouco mais de uma semana depois, com "Sobre escrever bem: uma declaração contra o império da simplicidade":
"Ninguém me dirá como escrever bem, nenhum tirano ditará quais palavras me cabe dizer, se meus verbos se insinuam antiquados, se meus adjetivos são invasivos e solenes, se meus advérbios alongam frases desnecessariamente, se minhas metáforas estão mortas como um rato esmagado por um trem, se minha sintaxe é sinuosa e austera, (...) incapaz de clareza, oposta ao prazer".
Fuks enfatiza a liberdade da criação literária, que é sagrada mesmo. Muita gente que conheço gostou dessa crônica. Eu fiquei pensando: que tirano é esse que tenta proibir alguém de usar quantas palavras quiser?
Onde está esse vilão numa cultura escrita de matriz ibérica que sempre foi palavrosa? Na terra bacharelesca e cantante de Ruy Barbosa, do verbo como marcador de poder, dos discursos opacos, mas mesmerizantes?
O foco da discussão merece ajuste. Sim, o elogio de clareza e concisão virou lugar-comum após a prosperidade que teve no século 20 o gênero textual jornalístico, "objetivo", de matriz principalmente anglófona.
Mas será que antes disso o poder de síntese não valia nada? Ô, se valia. Os poetas da antiga Grécia cultivaram a brevidade do epigrama. No início do século 18, o inglês Alexander Pope, tradutor de Homero, declarou em verso que palavras são como folhas de árvore: quando muito abundantes, podem esconder "o fruto do sentido".
O princípio de Ruy é inquestionável para certo tipo de escrita, a que é mais informativa. No jogo da literatura, em que a linguagem deve se justificar por si, não se aplica —ou se aplica, mas não da mesma forma. Ali vale qualquer coisa, desde que funcione.
Fuks enfileira palavras para reafirmar o direito de enfileirar palavras e assinalar um domínio em que a liberdade não pode ser menos que absoluta. Certo.
Contudo, a busca da expressão clara e justa continua a ser bastante útil na hora de encontrar o que fazer com a liberdade absoluta.
O barroco dos excessos verbais também exige palavras precisas; mais precisas até, como num solo de heavy metal em que a técnica do instrumentista deve ser mais apurada quanto mais barulho ele fizer.
Parece se dar com a maioria dos escribas humanos que, nos primeiros jorros, as palavras sobrem pelo menos um pouco, se esparramem. Botá-las no devido lugar segundo o efeito pretendido é preciso, pouco importa que abundem substantivos, adjetivos e advérbios.
Fuks sabe disso. Seu grito de rebeldia encontrou eco porque é uma defesa da liberdade, talvez ainda do excesso como valor estético importante —o que ele é, como sabem os tropicalistas.
De todo modo, por receio de que a treta seja mal interpretada por quem está no começo do caminho, fiz o que não gosto de fazer: me meti. Treta do bem tem atenuante?
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