Melhor ser óbvio do que omisso: palavras são as menores unidades de sentido autônomo da escrita, os tijolinhos da construção textual. Para escrever direito é preciso ter com elas uma intimidade pelo menos razoável.
Isso significa, em primeiro lugar, saber o que as palavras significam em estado de dicionário. O maior inimigo da boa vontade que temos para a leitura é descobrir que o autor usa "latente" quando queria dizer patente, "literal" para o que tem sentido figurado, "assertivo" por acertado, "infringir" por infligir etc.
Essa intimidade básica se obtém com leitura. Visitas a dicionários são bem-vindas, mas mais recomendadas em caso de dúvidas específicas. E é a experiência prévia de leitura que nos dirá o que e onde procurar.
Sim, há quem goste de passar horas a folhear compêndios de lexicografia, indo de uma palavra a outra como quem viaja a terras distantes. É claro que essa tara não faz mal a ninguém.
Para a maioria das pessoas, porém, ler um bom romance –inclusive um daqueles que os críticos desprezam como puro entretenimento, desde que decentemente escrito– será mais prazeroso e mais útil.
E esse é apenas o nível mais básico da intimidade com as palavras. Como toda língua que não esteja morta muda de feição o tempo todo –devagar, mas infalivelmente–, tão importante quanto conhecer as acepções dicionarizadas das palavras é saber que nuances e sutilezas elas carregam lá fora neste momento.
Nenhuma língua vive apenas dos vocábulos que os lexicógrafos já carimbaram. Observada a adequação ao contexto, muitas vezes é preciso dar uma ajuda a esses profissionais e pôr um novo termo em circulação "culta" para que acordem.
E isso ainda não basta. Há algo fundamental que podemos chamar de ouvido. Esteja a gente consciente disso ou não —e é melhor estar—, palavras guardam ecos e ressonâncias por força da história da língua e da cultura em que se inserem.
Entrevistando certa vez o escritor israelense Amós Oz, ouvi dele uma imagem que nunca esqueci, a do hebraico moderno como uma catedral construída na antiguidade ("os salmos e profetas estão todos lá"), na qual um escritor contemporâneo, ao tocar órgão, pode, se não tiver cuidado, soar notas bíblicas fora de hora e "conjurar ecos monstruosos".
Aquilo me deixou pensativo. Acabei concluindo que, guardadas as proporções, o mesmo pode ser dito de qualquer língua que tenha um patrimônio literário digno de nota. Estamos falando mais uma vez da importância de ler.
Mas a intimidade com as palavras toca numa dimensão cultural ainda mais profunda, num repertório de referências que vai além da literatura e inclui um acervo imenso de canções, cantigas de roda, quadrinhas populares, ditados, expressões idiomáticas, trocadilhos, bordões humorísticos.
É por isso que, por mais que estude e domine uma segunda língua, é tão difícil para um escritor trabalhar nela com a mesma desenvoltura que tinha em seu idioma natal. (Sim, a prosa suntuosa de Vladimir Nabokov não perdeu nada, e talvez até tenha ganho, quando ele trocou o russo pelo inglês, mas casos desse tipo são bem raros.)
No caso da língua portuguesa, uma rua que tenha um bosque vai convocar à consciência de grande parte dos leitores o nome Solidão, enquanto qualquer pedra que surgir no caminho fará aparecer no canto da página a silhueta magra de Drummond. É melhor que tudo isso esteja nos planos de quem escreve.
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