Já escrevi nesta coluna sobre uma falácia retórica que, velha o bastante para ser conhecida por seu nome em latim ("tu quoque", ou seja, você também), não sai de moda. No vocabulário da política, é uma espécie de rainha.
Chamada em inglês de "whataboutism", ela não tem nome em português, o que é uma pena. Talvez essa lacuna ajude a explicar a alegre inconsciência com que o pessoal se esbalda no seu prazer rasteiro em todos os campos político-ideológicos.
O "tu quoque" é aquela resposta automática diante de uma crítica que não se quer —ou, o que é mais comum, não se consegue— rebater com argumentos racionais. Em vez disso, aponta-se que o adversário também erra. Bolsonaristas passaram quatro anos repetindo nas redes sociais, feito papagaios: "E o Lula?".
Numa definição de almanaque sobre "whataboutism" consta uma curiosa relíquia da Guerra Fria: a resposta-padrão soviética a qualquer crítica americana à falta de liberdade na URSS era "e vocês lincham negros".
Como se vê, o "tu quoque" é um recurso porco que trava o debate. Costuma fazer sucesso com as arquibancadas, sobretudo quando expõe uma hipocrisia do acusador, mas deixa os problemas intactos. Por isso, funciona melhor em campanhas do que na hora de governar.
No uso intensivo que começou a ser feito nas redes sociais esta semana, por defensores de Lula, da fórmula "e o Bolsonaro?", percebe-se um problema ainda maior.
Bolsonaro é um primitivo perverso, uma espécie de hiena política, o pior presidente da história do Brasil com muitos corpos —quase 700 mil, e contando— de vantagem.
Perguntar "e o Bolsonaro?" diante de qualquer crítica que se faça a Lula pode parecer boa ideia, pois no contraste o presidente eleito se sairá fatalmente melhor. Trata-se de um erro.
Nesse caso, além dos defeitos que sempre teve, o "tu quoque" é também um tiro no pé. Lula e Bolsonaro não podem ser medidos com a mesma régua. São habitantes de planetas diferentes, de distintos estágios de evolução da humanidade.
Um é um estadista que acaba de obter democraticamente a maior vitória da sua e das nossas vidas, livrando o Brasil do projeto reacionário de um candidato a ditador. O outro... Bem, o outro é Jair Bolsonaro.
Quem pergunta "e o Bolsonaro?", acreditando blindar Lula, faz pouco dessa diferença fundamental. Sob o pretexto de defendê-lo, rebaixa o eleito ao submundo onde mora o presidente que está de saída.
Não faria sentido algum perguntar, em defesa de alguém que foi multado por excesso de velocidade na estrada: "Ah, é? E a Suzane von Richtofen?".
A Lula não bastará ser um governante melhor que Bolsonaro: qualquer um seria. O presidente que deixa o poder no fim deste ano não é parâmetro para ninguém.
Muito menos para quem tem pela frente uma tarefa dificílima de reconstrução nacional em tantas frentes —institucional, econômica e moral, para citar apenas três— sob o escrutínio tenso de um país rachado e em pé de guerra.
Com margem reduzida para cometer erros —como, a meu ver, o do episódio do jatinho—, Lula precisará contar com todas as críticas de boa-fé que puder amealhar.
Insistir no "tu quoque" só vai perpetuar nas veias do país o veneno deixado de herança por um governo indigno de se comparar a qualquer projeto civilizado.
"Perdeu, mané, não amola!" Novembro achou sua legenda definitiva. Parabéns ao ministro Barroso.
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