Quando um enunciado não faz sentido, pode ser que seu problema esteja na própria linguagem. Exemplo: "O apoio dos brasileiros à democracia atingiu um recorde de 79% a 10 dias do segundo turno das eleições entre Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL)", noticiou esta Folha na última quinta-feira (20).
Salta aos olhos o problema com a afirmativa, que rendeu a principal manchete do jornal naquele dia: como é possível que o "apoio à democracia" atinja um recorde histórico no Brasil às vésperas de um pleito em que metade do eleitorado anuncia voto em Bolsonaro, um candidato abertamente hostil à democracia?
"É o maior índice registrado pelo Datafolha desde o início da série histórica, em 1989", prosseguia a matéria, dando uma pista de que o equívoco da conversa poderia estar, antes de mais nada, numa questão metodológica.
De fato, perguntas como "você apoia a democracia?" têm um caráter genérico que costuma resultar em respostas sociologicamente ocas. "Você é a favor da vida?" é outro exemplo do problema.
Com exceção de casos patológicos como o do próprio presidente ("Meu negócio é matar"), as pessoas costumam se declarar favoráveis à vida. E a pergunta vaga acaba por lançar no mesmo saco gregos e baianos, o defensor da vacinação em massa ao lado do militante antiaborto que obriga uma criança a ter o filho de um estupro.
Como "vida", a palavra democracia fica fora de foco não por falta, mas por excesso de carga semântica. Alguns de seus defensores podem ter em mente a liberdade de atirar granadas contra policiais federais; outros, um tal respeito ao edifício das leis que os leva a cumprir até as ordens emanadas de um juiz comprovadamente parcial como Sergio Moro.
Em casos assim, antes de transformar o termo inflacionado em palavra funcional, é preciso garantir que os interlocutores estejam falando da mesma coisa: "Defina democracia".
Pesquisas de opinião têm um modo de lidar com essa armadilha: a abordagem indireta, que tenta pegar o interlocutor desprevenido e menos propenso a submeter sua resposta a filtros racionais –em outras palavras, mais inclinado à sinceridade.
Por exemplo, em vez de lhe perguntar se ele se identifica com o nazismo –algo que, mesmo entre os apoiadores de Bolsonaro, pouca gente estaria disposta a admitir em público–, formular uma questão como esta: "Imagine que você fez entrevista para o emprego dos seus sonhos, mas foi preterido por seu vizinho. Seu vizinho é judeu. Como você reage?"
Isso talvez ainda não seja toda a explicação para o curioso caso do "apoio recorde à democracia" neste Brasil convulso de 2022. Devido em parte a um mal-entendido, o resultado a que chegou a pesquisa pode ter também um componente bastante lógico.
Estamos num momento histórico peculiar em que um político de perfil extremista, subversivo e autoritário é competitivo segundo aquilo que –se pusermos de lado o abuso recorde da máquina pública para fins eleitorais– pode ser chamado de conjunto de regras do jogo democrático.
Nesse sentido, "apoiar a democracia" passa a ser uma posição estratégica para a fatia da população que gosta da ideia de destruir essa democracia. Menos que um paradoxo, temos um ato de realpolitik, de pragmatismo. Ou de cinismo, chame como preferir.
Resta torcer para que, neste domingo (30), os verdadeiros defensores da democracia sejam mais numerosos e derrotem o projeto ditatorial de Bolsonaro. Boa sorte para nós.
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