Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O problema da amarelinha

Copa América agrava a corrupção de um símbolo que deveríamos aposentar

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Símbolos são linguagem também. Como as palavras, podem se corromper, perder potência, trocar de mensagem. Aconteceu com a camisa amarela da seleção, e temo que seja tarde para voltar atrás.

A grotesca Copa América de última hora só acelera o processo. Sequestrada pelo grupo político que chegou ao poder em 2018, talvez tivesse sido possível a certa altura impedir a apropriação, reivindicando a amarelinha como o símbolo ecumênico (supraclubístico) que tradicionalmente era.

Não rolou. Foi tão maciça sua adoção pelo bolsonarismo, e tão violenta a forma como esse movimento reivindicou a fratura da sociedade, que fica difícil conceber um tempo em que ela volte a significar união.
Talvez num futuro que daqui não se enxerga, após o Brasil se libertar da onda fascistoide que o encaixotou de jeito. Mas será preciso submeter a camisa da CBF a uma lenta desintoxicação.

Manifestantes fazem ato em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, em Brasília - Lucio Tavora - 1.mai/Xinhua

Sei que para muitos brasileiros isso não tem importância. Para mim, tem —e acho que não estou sozinho. Escrevi um romance chamado “O Drible” (Companhia das Letras) para, entre outras coisas, acertar contas com os arrepios de orgulho vindos de uma infância marcada pelo tri.

Depois de acompanhar em chuviscosas TVs preto e branco cada triunfo da melhor seleção da história, íamos bater bola na rua, todos de amarelo. Eu era o Tostão, meu irmão era o Jairzinho. Éramos reis.

Quem pensa que o uniforme bolsonarista não difere do de então, quando a ditadura pegou carona no êxito do escrete, deve pensar mais um pouco. Em 1970 a amarelinha era essencialmente esportiva, a política não passava de uma conotação. Hoje é o contrário.

“O Drible” me custou muitos anos de trabalho, mas por sorte saiu antes da Copa de 2014 —aquela em que o símbolo começaria a ser arrastado na lama da desonra esportiva, num prenúncio da esculhambação que estava por vir.

Se até então era difícil imaginar um desastre que empanasse a história gloriosa da amarela, o 7 a 1 foi esse inimaginável. Bastaram 90 minutos para que o orgulho futebolístico brasileiro —um de nossos raros motivos de altivez no concerto das nações— voltasse 90 casas.

Acho que a desmoralização total do 7 a 1 ajuda a explicar a passividade com que assistimos em seguida ao sequestro do pano que velhos locutores chamavam de auriverde e canarinho.

Ah, então queriam transformar o manto de Didi, Pelé, Zico, Romário e Ronaldo em uniforme de gente saudosa da ditadura, defensora de torturadores, apoiadora da turma mais desqualificada da política nacional em todos os tempos?

Pois ficassem à vontade. Depois que a seleção alemã de Lahm, Müller e Schweinsteiger tinha usado a amarelinha como papel higiênico, que diferença isso podia fazer?

Não é como se a camisa amarela existisse desde sempre. Começando por 1930, o uniforme da seleção nas primeiras Copas era branco com detalhes em azul. Foi a traumática derrota para o Uruguai no Maracanã, em 1950, que instaurou o bode com a branquinha (a culpa era da camisa, claro) e abriu alas para a gloriosa era canarinho, inaugurada em 1952.

Minha modesta proposta, para quando o pesadelo brasileiro acabar, é que a seleção transforme seu segundo uniforme em primeiro e passe a jogar com a bela camisa azul. A reserva pode ser a injustiçada branca de Leônidas da Silva e Zizinho.

E que a amarelinha fique pegando sol e chuva no varal, à espera de que o tempo e o vento, quem sabe, consigam torná-la limpa outra vez.

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