"Dos governador (sic) de paraíba, o pior é o do Maranhão. Tem que ter nada com esse cara." A já antológica afirmação de Jair Bolsonaro pode não ser a mais chocante da sexta-feira (19) em que ele negou a fome no Brasil, atacou o Inpe e mentiu sobre Míriam Leitão.
Não duvido, porém, que seja a mais reveladora quando submetida a uma leitura atenta, aquilo que os críticos literários anglófonos chamam de "close reading". O primeiro passo é deixar de lado as respostas passionais.
Tanto a indignação com mais uma barbaridade do presidente quanto a defesa automática de suas boas intenções podem ser entraves ao entendimento do "caso paraíba".
Bolsonaro começou por engolir a flexão de plural da palavra "governador", identificando-se com a fala popular: "Dos governador(es) de paraíba...". Já veremos como isso é importante.
Houve quem ouvisse ali um nome próprio, Paraíba, metonímia do Nordeste em geral. Posteriormente, Bolsonaro explorou essa confusão em sua primeira defesa. Trata-se de um erro de leitura.
"Governador(es) de paraíba" refere-se, claro, aos governadores de estados habitados por paraíbas —um sinônimo pejorativo de nordestinos que é típico da fala carioca, embora não restrito a ela.
Como disseram os linguistas ouvidos pela Folha de quarta (24), tal acepção nasceu com as ondas migratórias do século 20. O preconceito que carrega é, além de regional, socioeconômico. Ninguém chama assim os filhos da elite nordestina. Uma das acepções de paraíba no "Houaiss" é "operário não qualificado da construção civil" (de qualquer origem!).
"Baiano" também aparece, de São Paulo para baixo, como sinônimo de nordestino (pobre), além de ter em diversas regiões as acepções de "fanfarrão" ou "ignorante".
Tudo isso é feio. Das torpezas que toda língua carrega, as que segregam gente pela origem são as piores. Que o digam portugas, japas, chinas, turcos (na verdade, sírio-libaneses) e outros grupos mimoseados pelo povo brasileiro —para não mencionar nosso nó central, o do preconceito contra os descendentes de africanos escravizados.
Aí vem a parte sinuosa da história. Uma marca da discriminação à moda canarinho é ser sonsa, ambígua. Diz o "Houaiss" que o tal uso de paraíba é "frequentemente, mas não necessariamente, pejorativo".
Se é verdade que quase toda ofensa, dependendo do contexto, pode soar brincalhona e até carinhosa, nossa sociabilidade explora essa ambivalência com gosto. Eis por que soam como CDFs os advogados que dizem haver no "caso paraíba" elementos para uma condenação por injúria.
Mesmo que não tivesse dado um show de cara de pau em Vitória da Conquista (BA) na terça-feira (23), quando disse que tem "sangue de cabra da peste" na família e que "somos todos paraíbas", o pai de Carlos provavelmente se safaria do episódio com poucos arranhões.
Seu álibi é a decantada molecagem brasileira, falha moral coletiva que permite conciliar o pior insulto e o sorriso mais maroto. E se Bolsonaro —grande entusiasta do humor de Bolsonaro, que sempre o faz rir muito— tiver sido apenas irreverente, mas sem maldade, como se supõe ser o brasileiro médio?
Suas palavras seguintes desautorizam essa interpretação: irritado, o capitão elegeu um alvo preciso ao dizer que "o pior (governador de paraíba) é o do Maranhão", Flávio Dino (PC do B). "Tem que ter nada com esse cara", completou. E daí? A essa altura já veio a próxima bolsonarice —e vamos que vamos!
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