De acordo com o dicionário Houaiss, um dos significados de estelionato é atribuído àquele que engana, o enganador. Nesse sentido, as normas previdenciárias se aproximam de tal palavra. Na verdade, que o crédito seja de quem criou as normas. De toda forma, elas conduzem os trabalhadores a crerem que terão determinado direito, mas depois nem sempre sai como se pensava. A vida toda tem sido assim.
O segurado se programa para cumprir um requisito e pouco tempo depois ele desaparece ou é alterado substancialmente. Num planejamento de aposentadorias que exige perenidade de 30 ou 35 anos de contribuição, durante essa caminhada a norma previdenciária vai se metamorfoseando. E os que dependem dela ficam com a sensação de que foram enganados.
Dentro desse contexto, a revisão da vida toda, no foco dos ministros do Supremo Tribunal Federal para ser resolvida neste semestre, também é um exemplo desse embaraço normativo. Se o bom senso prevalecer, o Supremo terá a oportunidade de corrigir mais um erro histórico.
De 1991 a 1999, vigorou no Brasil a possibilidade de o trabalhador se aposentar com base nos últimos 36 salários de contribuição. Isso permitiu que segurados pagassem a vida toda contribuições baixas e, nos três anos da véspera de se aposentar, aumentassem o valor da contribuição, inflando dessa maneira e artificialmente a renda final. Para corrigir essa distorção, foi criada uma regra previdenciária com outra distorção: a lei n. 9876/1999, cujo fato gerador viabilizar a revisão da vida toda.
A nova lei estabeleceu que o cálculo das novas aposentadorias seria feito considerando 80% das maiores contribuições, retroagindo a julho de 1994. Seria extinta a antiga fórmula de utilizar somente os últimos três anos de contribuição.
Assim, o que foi pago antes do Plano Real seria simplesmente apropriado pelo INSS, numa forma de enriquecimento ilícito da autarquia. Quem pagou valores altos antes ficou com a sensação de que foi enganado com mais uma troca de regras, perdendo todo o investimento. Cabe salientar que até 1989 havia possibilidade de o trabalhador pagar ao INSS contribuições incidentes em até 20 salários mínimos. Na alteração da lei, em 1999, o instituto embolsou essa dinheirama, o que vem acontecendo até hoje.
A revisão da vida toda surge a partir desse cenário. O governo altera uma norma, a fim de corrigir uma distorção, criando outra em desfavor de milhares de pessoas.
Além do caso da revisão da vida toda, acumulam-se casos de mudanças radicais de leis –em desfavor do trabalhador–, que são feitas periodicamente, deixando uma legião de pessoas com o sentimento de terem sido enganados ou sofrido estelionato previdenciário.
Sob o pretexto de que as contas previdenciárias estão deficitárias, de forma cíclica operam-se reformas no sistema normativo previdenciário que criam milhares de decepcionados.
Sem chance de portabilidade ou de sacar a reserva matemática, o pagamento da contribuição previdenciária ao Instituto Nacional do Seguro Social é um caminho sem volta. Por isso, muitos contribuintes ficam sem chance de sair ou migrar de sistema. A opção de parar também não é boa, pois vai abdicar do recurso pago.
Podem-se citar várias circunstâncias desse sentimento de enganação.
O principal deles é pagar a contribuição previdenciária por décadas, considerando um padrão financeiro, e na hora de ganhar a contraprestação receber até metade do que investiu.
São cálculos e variáveis propositalmente talhados para minorar a renda. Quem já conseguiu se aposentar ganhando acima do salário mínimo também sofre com o achatamento anual do salário que acontece ao longo dos anos. Outro exemplo é o caso de quem se tornou pensionista depois de 2019, já que a última reforma previdenciária reduziu o valor da pensão por morte em 40%.
No caso da revisão da vida toda, a chegada da lei 9876/1999 permitiu que todos os trabalhadores que contribuíram com o INSS perdessem os valores pagos antes de julho de 1994. Se era para considerar 80% das maiores contribuições, que se o fizesse durante toda a vida. Esse é o propósito da revisão debatida no STF.
Não faz sentido permitir que o INSS fique com uma renda de milhares de pessoas sem devolver nada ao segurado. Agora, os ministros do Supremo terão a oportunidade de corrigir essa distorção histórica e evitar mais uma enganação previdenciária.
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