Rodrigo Tavares

Professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017

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Precisamos repensar a morte dos animais

Com universalização da ideia de que animais têm consciência, comê-los será ato incivilizado e comercializá-los também

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As leis, as estruturas sociais, as religiões organizadas e os códigos morais têm imposto limites ao ato de matar. Com o passar dos séculos, foi-se gradualmente reduzindo o campo de possibilidades que os seres humanos têm à sua disposição para tirar a vida de outros seres vivos.

O homem primitivo possuía uma visão minimalista do respeito à vida do seu semelhante. As primeiras leis, como o Código de Hamurabi ou o Código dos Assírios, de mais de 3.500 anos, impuseram os primeiros limites à morte de pessoas por outras pessoas. Mas sempre houve exceções ao longo dos séculos. Muitas vezes, mulheres, africanos ou indígenas mantiveram-se dentro do terreno da discricionariedade humana e fora do perímetro seguro da lei. Foram, por isso, vítimas da vontade homicida de outros seres humanos.

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Vacas passeiam em pasto irrigado em propriedade rural em Barretos - Pierre Duarte - 9.ago.18/Folhapress

As bulas papais Dum Diversas (1452), Romanus Pontifex (1455) e Inter Caetera (1493) permitiram a subjugação e assassinato de povos indígenas na África e na América Latina. Só em 2023 é que esta doutrina foi formalmente repudiada pelo Vaticano.

Atualmente, do ponto de vista legal, podemos apenas matar seres humanos em situações específicas (por exemplo, em legítima defesa, como pena de morte, eutanásia, em situações de guerra). No Brasil, a "legítima defesa da honra" do homem, utilizada no passado para absolver assassinatos "passionais" de mulheres, foi declarada inconstitucional pelo STF em 2023. Ou seja, a mão da civilização vai encurtando os limites exteriores da arbitrariedade.

Até já chegou aos animais. No Brasil, a primeira legislação relativa à crueldade contra os animais foi o Decreto 16.590 de 1924. Depois veio a Constituição Federal de 1988 e a Lei dos Crimes Ambientais de 1998. Mas essas leis são especistas porque protegem "animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos" e permitem a morte de outros animais para consumo. A lei protege cachorros e gatos e sentencia bovinos, suínos e frangos. Umas leis protegem da morte umas espécies e outras leis, como a Instrução Normativa n. 3 de 2000, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, regulam a morte de outras. As fronteiras são pontos tracejados.

Quando falamos de animais, a linha de separação entre o que é considerado civilizado e bárbaro, ou o que é um comportamento permitido ou condenável pela lei, é uma zona ainda cinzenta, em movimento, tal como um dia foram os direitos humanos. Se há países, como o Brasil, que consideram os animais "bens móveis" sem personalidade jurídica ou direitos próprios reconhecidos pela lei, há outras jurisdições, como Nova York, que irá proibir a venda de cachorros, gatos e coelhos em lojas pet a partir de dezembro de 2024 (projeto de lei semelhante foi vetado em outubro de 2023 pelo governador Tarcísio de Freitas).

Em Portugal, a "matança do porco", entre guinchos agudos, com uma faca comprida espetada na garganta enquanto se aparam os esguichos de sangue em um alguidar de barro para fazer linguiças, outrora uma celebração caseira em comunidades rurais, foi-se extinguindo na última década à medida que a legislação europeia foi apertando o cerco. Ainda me lembro dos interioranos, no dia da matança, comendo com as mãos grossas pedaços quentes de sangue de porco escalfados em panelas de ferro fundido.

Portugal tem, no Parlamento, um partido político animalista (PAN) que propõe alargar a todos os animais a tutela penal aplicável aos animais de companhia. Por sua intervenção legislativa, uma opção vegetariana é, desde 2017, oferecida em todas as cantinas públicas do país: escolas e universidades, hospitais, estabelecimentos prisionais e lares.

Uma das bases para adotar leis que privam os animais do direito à vida assenta na ideia de que não têm consciência. Mais de 150 países não o reconhecem (incluindo o Brasil). Mas é uma visão ultrapassada. Em abril deste ano, mais de 40 professores universitários assinaram a Declaração de Nova York sobre a Consciência Animal, contestando a ideia de que animais não têm consciência ou subjetividade. Isso inclui até vertebrados (como répteis, anfíbios e peixes) e diversos invertebrados (moluscos cefalópodes, crustáceos decápodes e insetos).

Um relatório da LSE mostrou que há evidência científica que moluscos como polvos, lulas ou chocos e crustáceos como lagostas, lagostins e caranguejos são capazes de realizar várias funções neurológicas, como sentir dor e sofrimento. Tanto os cachorros que nós acariciamos quanto as vacas que nós comemos são seres sencientes, capazes de vivenciar sentimentos.

Se o novo Código Civil brasileiro, em discussão no Congresso, for aprovado, os animais passarão a ser considerados "seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica". O Brasil se igualará à maioria dos países desenvolvidos. Atualmente, ocupa posições baixas no Animal Protection Index e no Voiceless Animal Cruelty Index, que mensuram o respeito pelos direitos animais.

Outro eixo é a distinção entre "animais de companhia" e animais que podem ser comidos. Mas é uma delimitação puramente cultural ou religiosa, sem bases científicas ou de racionalidade. Comer cachorros, porcos, vacas, cavalos ou cangurus tanto pode ser uma iguaria quanto uma blasfêmia, dependendo do ponto onde a longitude se cruza com a latitude.

Uma vez alcançados alguns patamares legais, temos de acelerar o passo para a transição vegetariana. Parece uma frase ideológica, aspiracional ou ingênua. Mas quando se universalizar a ideia de que os animais têm consciência e de que o consumo de carne industrial é potencialmente danoso para a saúde humana e prejudicial para a saúde do planeta, matar animais passará a ser um ato incivilizado.

Se a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirma que "todo o indivíduo tem direito à vida", a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proposta em 1978, indica que "todos os animais nascem iguais perante a vida".

A primeira limitou o arbítrio discricionário das soberanias no trato das suas sociedades. A segunda, quando aprovada e quando os animais passarem a ter personalidade jurídica, também limitará o arbítrio discricionário das soberanias no trato dos seus jurisdicionados.

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