Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira

Tolerância às intolerâncias

Cristãos ortodoxos e católicos não se entendem há séculos

Ilustra da Luiza Panunzzio para Ricardo Pereira
Luiza Panunzzio/Editoria de Arte/Folhapress

Estava a contemplar a minha mesa do almoço de Páscoa, a família reunida em perfeita comunhão à volta do meu cabrito, da quinoa vegana do tio Júlio, da pasta sem glúten da minha filha, do chocolate sem lactose da minha outra filha, do chocolate sem vestígios de frutos de casca rija do meu afilhado, do chocolate sem soja do meu outro afilhado, da salada sem ervilhas nem feijão da tia Luísa, que está a fazer a dieta do paleolítico (uma época da história do mundo cuja existência a Bíblia nem reconhece), e a pensar que a tradição é uma coisa linda.

Cristãos ortodoxos e católicos não se entendem há séculos, e o motivo da discórdia é, essencialmente, uma palavra a mais no Credo e um ingrediente a menos no pão. Imagino o que eles diriam da minha mesa. Às vezes, eles envolvem-se em lutas uns com os outros, para decidir pela violência quais são os discípulos mais dignos do homem que veio dizer que se deve amar o próximo. 

Mas na minha mesa havia harmonia. Até chegarem os meus pais, que são vegetarianos. O tio Júlio, do alto do seu veganismo, despreza-os. 

Como eu esqueço sempre a diferença entre vegetarianos e veganos (embora ache que tanto uns como outros devem poder casar e adotar crianças), ele começou a explicar. Demoradamente. Fez muitos apartes jocosos sobre “esses vegetarianos que roem o seu aipo enquanto vestem um casaco de cabedal”. 
“Um vegano”, concluiu uma boa meia hora depois, “vive de modo a não infligir sofrimento aos animais”. “Não sei, tio”, disse eu. “Eu sou um animal, e esta conversa provocou-me algum sofrimento.” “Tu és um animal, isso é certo”, disse o tio Júlio. “Desagradável”, disse a tia Luísa.

“Típico dos veganos: não comem proteína, ficam fracos e perdem a cabeça com facilidade.” O tio Júlio contrapôs: “Você aceita conselhos de nutricionismo de cavernícolas. Hominídeos que tinham deixado de ser macacos uns 10 minutos antes. Porque é que não vai desenhar um dinossauro no interior de uma gruta?” 

Eu ainda pensei em dizer que não havia dinossauros no paleolítico, mas optei por continuar a comer a minha proteína com batatinhas. Como se fazia há 30 anos. Uma eternidade.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.