O passado profundo da Amazônia é um quebra-cabeças repleto de peças fascinantes, muitas das quais parecem ter começado a se encaixar nas últimas décadas. Algumas delas chamam a atenção de imediato, como a cerâmica esplendorosa ou a presença de imensas aldeias e estradas muitos séculos antes da chegada dos europeus. Em complexidade, porém, desconfio que poucas superem algo aparentemente bem menos glamouroso: um tipo muito peculiar de solo.
Refiro-me ao que os moradores da região chamam de "terra preta de índio". O contraste visual da terra preta com o solo predominantemente avermelhado da região amazônica é tão óbvio que acabou designando esse tipo de solo. Também tem ficado cada vez mais evidente o fato de que há uma associação entre a terra preta e os sítios arqueológicos da Amazônia, em praticamente todas as áreas, do Peru à foz do rio Amazonas.
As estimativas sobre a distribuição geográfica da terra preta variam. Há estudos que falam em 0,2% da área florestal da Amazônia, o que daria dez vezes o município de São Paulo. Outros apontam algo em torno de 3% da mata — três quartos do estado do Paraná, trocando em miúdos. A única certeza é que existe uma quantidade portentosa de terra preta por aí.
Sabemos ainda que esse substrato é muito mais fértil que a maioria dos solos amazônicos. É um solo que não se degrada facilmente com as intempéries e que carrega grandes quantidades de matéria orgânica e minerais como fósforo, cálcio, zinco e magnésio (embora seja relativamente pobre em potássio).
Outra certeza: trata-se de um solo antropogênico, ou seja, produzido pela ação humana. Bem mais incerto é o nível de intencionalidade por trás de seu surgimento. Sabemos que um componente importante da terra preta é a presença de inúmeros fragmentos muito pequenos de carvão, resultado da queima lenta e incompleta de matéria vegetal. Há ainda fragmentos de ossos de peixes, pedaços de cerâmica e compostos químicos que carregam uma assinatura química associada às fezes humanas.
Tudo isso parece bater com algum sistema de manejo de resíduos de origem vegetal e animal que, com o tempo, pode ter se transformado num processo de produção deliberada de solo mais fértil, talvez turbinando o avanço agrícola detectado na Amazônia a partir de uns 2.000 anos atrás.
E há boas razões para acreditar que a "receita" da terra preta também pode ser uma aliada do reflorestamento no presente. Num estudo que acaba de sair no periódico especializado Frontiers in Soil Science, pesquisadores brasileiros acabam de mostrar que a terra preta turbina o crescimento de árvores nativas num solo em que antes havia pasto.
No trabalho, especialistas da USP de Piracicaba, da Embrapa Amazônia Ocidental e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia simularam o reflorestamento em laboratório. Primeiro plantaram capim em vasos com 3 kg de solo e, após 60 dias, cortaram-no. Depois, plantaram neles sementes de três árvores nativas (embaúba, canafístula e cedro-rosa), correspondentes às diferentes fases de regeneração de uma floresta.
O detalhe é que alguns vasos do experimento tinham solo normal, enquanto outros tinham 20% e 100% de terra preta em sua composição. Resultado: as mudas das árvores chegaram a ficar até cinco vezes mais altas nos vasos com a mistura de solo normal com terra preta, e seis vezes mais altas nos que continham apenas o solo antropogênico.
A equipe do estudo, que tem como primeiro autor Anderson de Freitas, da USP, estima que o diferencial da terra preta tem a ver não só com os nutrientes desse solo, mas também com a comunidade específica de micro-organismos que viceja nele. As lições da terra preta, portanto, poderiam ser reproduzidas para moldar outros solos por meio da transferência desses micróbios, sem a necessidade de explorá-la comercialmente.
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