Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu LGBTQIA+

'Amor não tem gênero', diz mãe de menina trans de 7 anos

Autora do livro "Minha Criança Trans" vira ativista ao lidar com os desafios da transição de gênero do filho que se identifica como menina desde os 4 anos

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Thamirys Nunes, autora do livro "Minha Criança Trans", com a filha Agatha, 7, que começou processo de transição de gênero aos 4 anos. (Foto: Divulgação ) Divulgação

São Paulo

Thamirys Nunes, 32, tornou-se mãe de Bento em 1° de fevereiro de 2015. Quatro anos depois, viu nascer Agatha, como a criança passou a se identificar a partir de junho de 2019, com suporte dos pais e de uma psicóloga.

O processo de transição de gênero na primeira infância foi doloroso para a família radicada em Curitiba. Tudo era novidade para os pais, uma comunicóloga e um arquiteto que se confrontaram com falta de informação sobre crianças LGBTQIA+ e excesso de preconceitos.

A experiência é narrada no livro "Minha Criança Trans" (256 págs., R$ 45), lançado em junho de 2020, e também em posts no perfil de mesmo nome no Instagram com 47 mil seguidores. Espaços de questionamentos, dicas e relatos de discriminação vivenciados no ambiente familiar, escolar e social.

Nessa jornada, Thamirys se tornou coordenadora da Área de Proteção e Acolhimento a Crianças, Adolescentes e Famílias da Aliança Nacional LGBTI+.

A seguir o depoimento da mãe e ativista sobre conquistas como a certidão de nascimento com retificação de nome e gênero obtida em agosto de 2021.

"Aos 2 anos, Bento apresentava desconforto ao colocar roupas masculinas ou quando ganhava carrinhos de brinquedo.

Aos 3, ele já verbalizava que queria brincar de boneca: ‘Mamãe, se eu tivesse nascido menina era mais legal’.

No aniversário, pediu uma Batgirl. Ganhou o Batman, mas fez um vestido de massinha para o boneco: ´Mãe, fiz a minha Batgirl’. Depois, pediu uma bicicleta da Barbie.

Quando ele começou a apresentar essas preferências, ficamos perdidos. Procuramos uma psicóloga que disse que nós não sabíamos educar um filho homem. Essa profissional recomendou que tirássemos do universo dele tudo que era feminino e reforçasse o masculino.

Era uma espécie de cárcere privado de gênero. Meu filho estava infeliz e eu também.

Thamirys Nunes

mãe de uma criança trans

Criticou o fato de eu estar maquiada e de salto às 10h da manhã, sugerindo que deixasse de ser tão vaidosa. Passei a usar calça, trancamos o quarto da irmã mais velha, filha do primeiro casamento do meu marido.

Era uma espécie de cárcere privado de gênero. Meu filho estava infeliz e eu também. Ele roía as unhas até sangrar, chorava do nada. Estava sofrendo.

Na festa de aniversário de 4 anos, Bento pediu o tema unicórnio, mas resolvemos fazer do Mickey. Sem a turma, porque ele certamente iria se agarrar à Minnie.

Quando chegou ao bufê infantil, disse que aquela festa não era a dele. Ficou sentado quatro horas, pedindo para ir embora, enquanto as outras 30 crianças brincavam.

Foi quando eu disse: ‘Chega'. Não dava mais conta de brigar com meu filho, de ser essa mãe que não ama mas aprisiona uma criança num lugar onde ela não quer estar.

Pedi para uma amiga trazer uma boneca de presente. Bento ficou muito feliz. Disse ao meu marido: 'De hoje em diante, nosso filho vai se vestir e brincar como quiser. A escolha vai ser dele'.

Percebi o quanto aquela orientação da psicóloga foi preconceituosa. Começamos a conversar com Bento e com a escola, nada acolhedora. A diretora falou que era para eu ocupar a minha cabeça, que essas coisas não existiam naquela idade.

Sentíamos um abandono total. Ninguém queria falar sobre o assunto. Nosso círculo de amigos e família não estava preparado para lidar com uma criança trans.

O pediatra também foi muito reticente. Estávamos vivendo algo que não sabíamos o que era. Não encontrávamos amparo. Fui procurar livros sobre o assunto, mas só tinha sobre adultos trans.

O que fazer quando se trata de uma criança de 4 anos? A transição de gênero do Bento gerava angústia. Ele passou a usar vestido em casa. Pedia: 'Me chama de linda, mamãe'. Como se comportar nesses casos? Vai passar?

Procurei reportagens na internet. Havia muita coisa em inglês. Em 2019, encontrei o caso de uma família brasileira com uma criança trans de 9 anos.

Eles me indicaram a psicóloga da filha, uma menina trans. Para essa profissional, quando crianças e adolescentes se entendem como pessoas trans, elas devem ter o direito de existir e a liberdade de escolha, de experimentação.

Essa nova psicóloga explicou que era preciso respeitar o tempo da criança e ofertar um espaço neutro para ela manifestar os próprios gostos.

Não foi fácil. Fomos atacados, achincalhados. Fui chamada de louca, denunciada ao Conselho Tutelar. Denúncia anônima com alegação de maus tratos por 'obrigar' meu filho a usar vestido.

Ligaram para meu marido sugerindo que eu fosse internada em um hospício. Nunca questionam ele, sempre a mim. Fui muito atacada enquanto mãe.

Temos uma família grande. Conversamos com nossos irmãos e pais. Com os demais, não. Postei foto no Instagram com a legenda: 'Minha filha, amor da minha vida, eu te amo'.

O adulto não pode levar a sua dor para a criança em transição.

Thamirys Nunes

sobre Agatha, filha trans de 7 anos

Alguns parentes e amigos vieram conversar. Outros sumiram. Não tinha nada a ser justificado. A mensagem foi: minha criança é assim.

O mais importante foi o Bento sentir que não ia perder o amor de pai e de mãe. O adulto não pode levar a sua dor para a criança em transição.

Vivemos um episódio em que entrei em pânico. Bento pegou uma tesoura para cortar o pipi. Quando percebi esse desejo de mutilação disse a ela que não ia ser menos menina por ter um pipi.

A decisão de mudar de nome foi ao final do processo, após a mudança do guarda-roupa e adoção do uniforme feminino.

Cinco meses depois do aniversário de 4 anos, em 28 de junho de 2019, Bento comunicou ao pai: 'Sou uma menina. Meu nome é Agatha. E não tem problema ser menina de pipi'.

Nossa criança encontrou um ambiente seguro para se manifestar. Mudamos de casa e o novo quarto da Agatha já era rosa. Ela chorou quando viu.

Deixamos as roupas e os brinquedos masculinos no armário até ela decidir doar. No tempo dela.

Quando começamos a ficar bem, pensei nas outras mães que estão no olho do furacão em meio a esse deserto de desinformação. Precisava falar para elas: 'Vai ficar tudo bem'.

No ano passado, chegou ao meu conhecimento o suicídio de dois adolescentes trans. Decidi que ia escrever um livro contando tudo que vivi. Queria que tivesse uma obra sobre o assunto ao alcance de outros pais.

Quando o livro estava pronto, fiquei pasma de as grandes editoras e livrarias não se interessarem. Peguei empréstimo e banquei a publicação. Criei um perfil no Instagram, Minha Criança Trans, como canal de venda e informação. Já foram vendidos 1.100 exemplares do livro no boca a boca.

Recebo mensagens de muitas mães, que sempre começam com 'acho que tenho uma criança trans'. Criei um grupo de WhatsApp com 30 pessoas, hoje somos 290. É fundamental que as famílias se abram para o diálogo.

O entendimento de uma criança sobre gênero começa por volta dos 2 anos de idade. Enquanto as questões de sexualidade vêm com a puberdade, na adolescência.

Nas escolas, é mais difícil lidar com os pais dos coleguinhas. Tem aqueles inconformados, temendo que a convivência com uma criança trans vá influenciar os filhos.

Quando nossa filha adotou o nome social, fizemos mudança de escola, onde ela passou a ser identificada como Agatha e pedimos para não contar na sala que ela era trans.

Mas a informação vazou. Ela era do pré, mas no recreio foi abordada por dois meninos do 4° ano: 'Você é a menina de pipi'. Como a coordenação rompeu o pacto logo na primeira semana, decidimos tirá-la da escola.

'A menina de pipi sempre apanha', disse Agatha sobre a experiência. Logo veio a pandemia e ela passou a ter aula em casa com um professor particular.

Ano passado, ela ingressou em uma outra escola, já com todos os documentos retificados. Os colegas não sabem que ela é trans. Nossa conversa é: se ela quiser contar, ela conta. Não se trata de esconder, mas de protegê-la.

Não tem nenhuma lei que proíba a escola de expor a identidade de uma criança trans. Todas as políticas públicas no Brasil são voltadas para a população trans adulta. Temos urgência em olhar também para essa faixa infantojuvenil.

Procurei o presidente da Aliança Nacional LGBTI+, que é um homem gay, e ele me disse: 'Precisamos de uma mãe nessa luta'. Quem vai brigar pela minha filha até ela crescer se não eu?

Abri mão do meu trabalho e passei a atuar como voluntária pelos direitos de crianças trans. São 12 horas por dia atendendo famílias, resolvendo problemas em escola.


Já temos alguns avanços. O decreto do nome social não fala especificamente de criança. Em vários estados, menor de 13 anos não pode adotar o nome compatível com o gênero com o qual se identifica. Em outros, menores de 16 anos precisam apresentar laudo médico.

Antes de ter a documentação, passamos por uma situação horrorosa na volta de uma viagem a São Paulo. O motorista do ônibus não queria nos deixar embarcar pelo fato de a Agatha estar vestida de menina e o documento a identificar como Bento.

Ele me disse que eu podia estar sequestrando a criança. Depois do constrangimento, consegui entrar no ônibus, mas fui ameaçada: 'Se for parado pela Polícia Rodoviária, deixo vocês na estrada'.

Tempos depois, voltei a São Paulo para fazer o novo RG da minha filha com o nome social escolhido por ela. Ela assinou o RG como Agatha. O passo seguinte foi mudar também o registro civil da nossa filha.

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