Pelé chegou pontualmente às 17 horas. O ano era 1992 e o assunto, a taça do Mundial de Clubes do Santos, que havia desaparecido.
O Santos não sabia onde estava e fomos procurá-la na sala de troféus.
Celso Unzelte marcou o encontro e, incrível, o Rei topou: procurar na barafunda de taças que o Santos tinha naquela época —hoje há o maravilhoso Memorial das Conquistas.
Pelé chegou na hora marcada, desceu de sua Mercedes, caminhou em direção à equipe da revista Placar, cumprimentou os repórteres e seguimos.
Abre-se o elevador e sai um homem, de meia-idade, com a filha, não mais de cinco anos. Pelé entra e o senhor o para: "Pelé, Pelé... Ela quer muito o seu autógrafo".
A menina, pequenina, sorri. Não parece entender o que se passa. Pelé interrompe o fechamento da porta do elevador, abaixa-se, autografa a camisa da garotinha, dá-lhe um beijo, um aperto na mão do pai e, só então, sobe.
Procuramos a taça por mais de uma hora. Não estava lá. O Santos pediu ao São Paulo o troféu para fazer a réplica que hoje vive no Memorial.
Pelé ajudou a ganhá-la fazendo a atuação mais espetacular de sua carreira contra o Benfica. Fez três em Lisboa e já tinha feito dois no Maracanã. Antes da partida no estádio da Luz, o clube lisboeta anunciava vendas de ingressos para o jogo extra, necessário se houvesse uma vitória para cada lado. Não houve. Pelé não deixou.
Foi campeão mundial aos 17 anos, o mais jovem de sempre, fez dois gols na decisão contra a Suécia, o recorde de juventude, ganhou o bi jogando só duas partidas, em 1962, por lesão muscular na virilha, foi perseguido pelos zagueiros na Inglaterra, em 1966.
No ano seguinte, declarou que podia desistir de jogar a Copa do Mundo de 1970: "Eu não tenho sorte nas Copas, sempre estive machucado." Referia-se, também, à pancada que levou de Ari Clemente antes do embarque para na Suécia, em 1958, o que o tirou de combate no início do torneio.
Se alguém tinha dúvidas no final da década de 1960, Pelé apagou todas. Fez quatro gols na conquista do Tri e deu o passe para a mais bela obra coletiva da história das Copas, o gol de Carlos Alberto, contra a Itália.
Em todos os esportes, a tecnologia e os métodos de treino avançaram de modo a dizer que os mais recentes são melhores do que as lendas. É óbvio que Usain Bolt é mais rápido do que Jesse Owens, Michael Phelps mais impressionante do que Mark Spitz.
Cristiano Ronaldo é mais forte e Messi, talvez, tenha mais drible... Mas Pelé era a soma dos dois gênios do século 21. A potência do português aliada à arte do argentino.
Tabelou com Coutinho —e com a canela do zagueiro adversário.
Os europeus consideram apenas gols em jogos oficiais, o que fez Cristiano ultrapassar o Rei nesta estatística. Parabéns ao gajo. Os 1.283 gols de Pelé valeram pelos pontos e pela arte.
Num amistoso, Pelé parou uma guerra. Como é que esse jogo não vale?
Sabe o que é ser Rei?
Ser Rei é passar 64 anos de sua vida ouvindo dizer que Di Stéfano e Maradona podem ter sido melhores, que Messi, quem sabe, pode ser superior, Cristiano Ronaldo mais goleador, que Cruyff talvez tenha sido mais inteligente... E a comparação é sempre com Pelé, que ainda chegava na hora marcada e fazia carinho na menina —e em seu pai— na porta do elevador da Vila Belmiro.
Isso é ser Rei.
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