� escritora e colunista de gastronomia da Folha h� 25 anos. � formada em Educa��o pela USP e dona do Buffet Ginger h� 26 anos.
Escreve �s quartas-feiras.
Como curar, com dor e desgosto, uma panela de ferro fundido
Chamava-se Mark Maron. Comprou a primeira panela de ferro fundido na Calif�rnia, quando foi fazer o mestrado, numa daquelas "garage sale" espalhadas pela rua. Era uma frigideira pesada e, mal a pegou, j� sentiu na nuca o olhar da mocinha que vendia. Loura, bonita, de cabelo bem curto, jeans, um piercing no nariz, e voz decidida: "Pode levar se me prometer que jamais a lavar� com �gua e sab�o. Era da minha av�, est� muito bem curada."
Ele ainda quis fugir da compra, perguntou se n�o era melhor guardar para n�o se arrepender, mas ela respondeu decidida que estava na hora, estava na hora e pronto.
Levou para casa se sentindo um pioneiro, a menina ensinara que o processo de cura era s� passar uma gordura e colocar a panela no fogo ou no forno. Fazer isso tr�s vezes, ficava uma pel�cula dura por fora e a comida n�o pegava, n�o grudava no fundo. Neg�cio feito, guardi�o dos rituais americanos.
Preferiu comprar banha, queria fazer em casa, coisa de barriga de porco, toucinho, depois coava. Enfiou no forno as tr�s vezes mandadas, se arrependeu um pouco por causa da fumaceira na cozinha m�nima, mas quando acabou sentiu que a panela era mais dele do que antes.
Leonardo Wen/Folhapress | ||
Andou com ela por dois casamentos, duas mudan�as, um livro escrito e mal-sucedido e um livro bom que vendeu muito. Era assim, cada vez que sofria uma dor, um desgosto, curava a panela e os dois saiam melhor da tristeza. Mais limpos, mais fortes.
Um dia, sem desgosto algum, foi ao Google. Achava que a frigideira estava precisando de uma boa limpeza, viu m�todos incr�veis, mas se decidiu pelo de uma senhora qu�mica que mandava limpar muito bem, com coragem, e com um l�quido desses comuns de tirar gordura. Foi o que ele fez at� a panela ficar nua e crua, depois a afundou imediatamente em �gua, e vinagre com bicarbonato para n�o haver a menor possibilidade de enferrujar. Passou a linha�a com pincel e levou ao forno.
A senhora qu�mica avisara que poderia lavar, sim, contanto que secasse bem depois. Mas n�o deu certo a tal cura. Passavam-se os dias, foi ficando com um �dio do tal do Google e da senhora. Mentirosa, n�o se mexia assim com as tradi��es de um povo, de uma velhinha morta, de uma mo�a de jeans e barriga de fora.
N�o teve jeito mesmo: tudo grudava e ainda sa�am peda�os de pele do fundo. Enfim, uma panela doente. Resolveu que n�o ia curar de novo. Por uns tempos. Esperaria o susto, a paix�o, o desaforo, o que fosse. Viria, com certeza, e ent�o ele curaria a panela devagarinho, com os cuidados que se devia ter com uma amiga.
Suspirou, guardou na prateleira mais alta, sentindo-se um pouco menor na sua estatura de pioneiro e esperou o dia chegar. Dia de cura. Dele e da panela. De onde sairiam limpos, fortes, refrescados, com a alma cantando como depois de um banho de cachoeira no veranico.
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