![nina horta](http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/11328600.jpeg)
� escritora e colunista de gastronomia da Folha h� 25 anos. � formada em Educa��o pela USP e dona do Buffet Ginger h� 26 anos.
Escreve �s quartas-feiras.
Quem come no McDonald's n�o tem nada a esconder
Reuters | ||
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Simbolo da rede McDonald's |
Escrevi dois livros e esse texto foi cortado. O que voc�s acham? Estou fazendo uma pesquisa em restaurantes de quilo, de buf�. Acho que � hora de ressuscitar essa cr�nica. Para discuss�o.
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O que �, o que �, o mais adorado e detestado fast-food do mundo?
Um card�pio limitado e padronizado que combina servi�o r�pido, limpeza e pre�o baixo. Pode ter mudado h�bitos de comer fora, mas n�o p�e em perigo h�bitos de comer bem.
A crian�a que mastiga o hamb�rguer pode e possivelmente est� escapando de uma alm�ndega p�lida, cheia de pelotas de miolo de p�o amanhecido, em molho de tomate de lata. Em casa.
N�o morro de amores pelo McDonald's porque n�o como hamb�rgueres —nem dos �timos. Mas n�o tenho medo dele. Foi l� que introduzimos nosso neto de quatro anos, que nascera num regime natural, na pervers�o americanizada. Levantou o copo com o canudo dentro e nos saudou com um tim-tim, como se fosse vinho ou champanhe.
Foi l� que perguntou de supet�o ao av�: "Voc� acredita em Papai Noel? Eu acredito". A neta, uma vez, chorou desabaladamente at� chegar em casa e nos castigou por um tempo com sua aus�ncia porque n�o deixamos que tirasse a cebola de dentro do sandu�che.
Quem tem medo de fast-food? Este mesmo neto, hoje, percebe nuances no arroz do sushi, d� palpites em fondues. A neta faz bolos de chocolate, entende de ervas e de queijos.
O McDonald's somos n�s, a plebe, numa festa muito popular dos anos 1950, "come as you are". De bermuda, pijama, saia curta ou comprida, mai�, agasalho, tudo vale. Nada, nada em mat�ria de roupa ou sapato � estranho ao McDonald's.
Muita crian�a, muito pai e muita m�e. Adolescentes espinhudos. Bastante gente gorda. Pretos, amarelos e brancos. Internos do hospital mais pr�ximo de uniforme e estetosc�pio. Empregados do supermercado ao lado. Namoradinhos apaixonados sobre a Coca-Cola. Adultos de celular. E velhinhas em penca. O �nico lugar do Brasil onde se permite a entrada de velhinhas. Curvadas, passo curto, encantadas com aquela �ltima migalha de vida em que ainda podem participar, de conviv�ncia, de barulho, alegria. Babujam na comida sem que algu�m repare, se enlevam com as caixinhas t�o vistosas, comem com os modos que a velhice lhes permite.
Quem come no McDonald's � um transparente. N�o tem nada a esconder. Cada um � �nico, fortaleza �ntegra diante do padronizado. Eu sou assim, minha fam�lia � assim, e da�?
As crian�as pequenas t�m largo espa�o para aprender a se comportar em p�blico. Ficar na fila, pagar, conferir troco, deixar a mesa limpa, destampar caixinhas, abrir tubos, o que � feito consider�vel com a mostarda e o ketchup.
Num restaurante estrelado receberiam um sem-fim de belisc�es fininhos e disfar�ados a qualquer deslize e ainda teriam que engolir o choro.
Numa sexta-feira de pregui�a, sentaram-se ao nosso lado cinco pessoas. Um casal mo�o, ele, mudo, ela tagarela a mais n�o poder, o filho bem pequeno e os av�s. O av� abriu uma caixa de rem�dios e retirou a bula, que leu com profunda seriedade durante toda a refei��o, mas quem me atraiu foi a av�. Era destas senhoras fortes, triangulares, muito ombro e bunda inexistente, com saia pelos joelhos, blusa curta por cima. Sentava-se puxando a saia com as duas m�os, como num tique nervoso, para que n�o lhe vissem os joelhos, as varizes ou suspeitassem de sua seriedade. De vez em quando passava a m�o avermelhada pelos cabelos curtos e grisalhos.
Quando o hamb�rguer chegou ela puxou a saia mais uma vez, pegou o sandu�che e come�ou a com�-lo numa felicidade contida, com o cora��o cantando baixo. Atenta, muito atenta e feliz. Atr�s daquele ritmo vagaroso de comer o p�o, quase escondia o prazer daquele privil�gio. Jantava fora.
Com aquela inocente escapada evitara seis panelas sujas, o arroz grudado no fundo de uma, 12 pratos, talheres, as sobras enchendo os Tupperwares na geladeira apertada. Um fog�o engordurado, a pia meio entupida, a �gua quente jogada no ch�o escorregadio, o rodo, o pano de ch�o, a indiferen�a distra�da de todos. Este � um dos motivos pelo qual me agrada o McDonald's. O outro s�o as batatinhas fritas com ketchup.
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