Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas cedem seus espaços para refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil. Quem escreve é Paulo Almeida, diretor-executivo e coordenador do Observatório de Políticas Científicas do Instituto Questão de Ciência.
Ainda que seja difícil extrair algo positivo da pandemia, ela sem dúvida contribuiu para amadurecer a percepção de que a ciência é uma ferramenta relevante para lidar com questões complexas e processos públicos de tomada de decisão. Discutir o uso de evidências na formulação, avaliação e acompanhamento de políticas públicas se tornou uma prática mais frequente. Em alguns momentos, como na CPI da Covid, ensaios clínicos ou efeito placebo foram assuntos que ocuparam o centro das atenções do país.
Esse holofote, contudo, não está garantido para sempre. Já há sinais de que, com o arrefecimento da pandemia, pesquisadores têm sido menos instados a se manifestar e fornecer respaldo para as tomadas de decisão na esfera pública. Precisamos reverter essa tendência: esta é uma chance de ouro para incorporar o uso da ciência como alicerce de deliberações fundamentais para a população. Perder essa oportunidade pode transformar o conceito de políticas públicas baseadas em evidências em mera "buzzword" —um chavão vazio, que aparece em programas de governo mas não se traduz em ações concretas.
O tema merece especial atenção no Brasil, onde defensores de práticas sem comprovação descobriram gargalos e atalhos que exploram uma permeabilidade institucional profunda nos três poderes, em órgãos de classe (como os conselhos federais) e qualquer outra instância que ofereça credibilidade meramente pela autoridade de uma sigla, ainda que não haja análises de eficácia ou custo-benefício que deem respaldo a tais práticas.
A saga da fosfoetanolamina, fármaco oferecido por um professor universitário do interior de São Paulo para a cura do câncer, vem a calhar como ilustração disso. Ainda que não houvesse nenhuma plausibilidade bioquímica para a utilização dessa substância como tratamento oncológico, a autorização de seu uso foi levada ao Congresso Nacional como projeto de lei, que foi aprovado no Legislativo e sancionado pelo Executivo. Posteriormente, o STF suspendeu a eficácia e, em seguida, julgou inconstitucional a "Lei da Fosfo" (como foi apelidada). Ou seja: as instâncias mais altas dos três poderes se envolveram diretamente em uma discussão que deveria ter se resolvido no âmbito técnico.
Seria de extrema importância que os representantes da ciência nacional se organizassem, de modo profissional e centralizado, e se aproveitassem desse momento para levar adiante uma discussão sobre os problemas estruturais que permitem a oficialização de práticas sem respaldo científico. O ativismo e o lobby são subaproveitados como ferramentas de promoção de interesses setoriais que, nesse caso, estão plenamente alinhados aos interesses da nação.
O objetivo não é defender uma tecnocracia, justificar qualquer decisão política tomando como base indicadores exclusivamente científicos. Seria ideal, contudo, que evidências científicas se tornassem um pilar da tomada de decisões tão relevante quanto o econômico, o jurídico e o político — o que já ocorre em países desenvolvidos. Parte desse caminho depende do voto. Outra, dos próprios cientistas: precisa haver maior organização do meio acadêmico, de seus representantes e aliados para a execução de uma agenda propositiva, mirando propostas concretas, objetivas e factíveis.
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