Mirian Goldenberg

Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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Mirian Goldenberg

Fora velhofobia!

Precisamos falar da morte simbólica de milhões de brasileiros invisíveis

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A capixaba Aldemira Adão, de 94 anos, já se acostumou com os comentários preconceituosos: “Aquela senhorinha tá ficando doida”. “Essa senhora, em vez de ficar dentro de casa...”. “Que velha maluca, ela não vai aguentar”.

Aldemira finge que não escuta e continua a correr.

Ela trabalhou muito tempo na lavoura e depois “em casa de família” até se aposentar. Após a morte do marido, passou a se sentir muito só. Para fazer amigos, procurou “um grupo de convivência da terceira idade”.

Começou a correr “por acaso”. Estava caminhando com os novos amigos quando escutou o apito de largada de uma corrida. Aos 75 anos, saiu correndo pela primeira vez na vida, completou os dez quilômetros e nunca mais parou. Hoje, corre três vezes por semana de sete a 12 quilômetros e já ganhou troféus e medalhas.

Ela se define como vovó corredora: “Teimosa por natureza, guerreira na vida e corredora por opção”. “Eu me sinto tão bem correndo que parece até que estou nascendo de novo. Se não fosse a corrida, acho que eu teria morrido.”

idosa correndo e, ao fundo, o mar
A corredora capixaba Aldemira Adão, de 94 anos - Reprodução/Instagram

Aldemira é um exemplo de “bela velhice”. Infelizmente, essa não é a realidade de milhões de brasileiros.

As nossas casas escondem uma brutal violência física, psicológica e verbal, abuso financeiro, negligência, falta de cuidados básicos de higiene e saúde, maus tratos e abandono dos mais velhos. As denúncias pelo Disque 100 cresceram 500% durante a pandemia: só no primeiro semestre de 2021 foram registrados mais de 33,6 mil casos de violência contra os velhos. A realidade é muito mais assustadora, pois a maioria tem medo e vergonha de denunciar seus agressores, os próprios filhos em mais de 50% dos casos, além dos netos, cônjuges, genros e noras.

Mas a velhofobia não está somente dentro de casa.

Quem não ficou horrorizado com os discursos velhofóbicos das autoridades xingando os velhos de “inúteis”, “descartáveis” e “um peso” para a sociedade?

“Vão morrer só alguns velhinhos doentes. Os velhos vão morrer mesmo, mais cedo ou mais tarde. Vai ser até bom para a Previdência se morrerem logo. O problema do Brasil é que todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130...”.

Recentemente, tive o desprazer de participar de um debate com um “especialista” que não queria perder tempo escutando as histórias dos nonagenários que pesquiso desde 2015. Com uma atitude de superioridade, ele me interrompeu: “Esses velhinhos são uma porcentagem minúscula da população brasileira, uma minoria insignificante. É praticamente impossível encontrar nonagenários tão saudáveis, ativos, lúcidos e independentes. Vamos debater o que é importante, a situação miserável da grande
maioria dos velhos no Brasil”.

Fiquei chocada com a arrogância e agressividade dele que não consegui responder, mas o mediador reagiu indignado.

“Quem disse que o senhor tem o monopólio da fala sobre a velhice? Qual o seu interesse em criar uma polarização estapafúrdia entre os velhos que merecem atenção e os que devem ser ignorados? Se as vacinas não tivessem sido sabotadas, quantos dos 500 mil brasileiros que morreram estariam vivos e poderiam ter uma velhice como a dos nonagenários pesquisados pela Mirian? É preciso a união de todos contra os psicopatas genocidas, é um absurdo provocar divisões que só enfraquecem a luta contra a velhofobia”.

Inspirada em Aldemira, apesar de ainda faltar algum tempo para os meus 75 anos, estou pensando em começar a correr. Apesar dos velhofóbicos de plantão, também quero ser uma “velha maluca” ou, como cantaria Raul Seixas, uma “velha maluca beleza”, e viver 100, 120, 130 anos .Fora velhofobia!

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