Não raramente, o debate público brasileiro em alguns temas é limitado. O relacionado à Lei de Cotas costuma refletir isso. Há expressiva ênfase em seu funcionamento e no desempenho dos cotistas. Porém, ainda se dá pouca atenção ao seu amplo impacto socioeconômico direto e indireto.
Sabe-se que para aqueles que nascem em famílias de baixa renda, a educação representa um dos melhores caminhos para a mobilidade social. Tal fato é ainda mais saliente no contexto brasileiro, visto que o retorno médio de investir no ensino superior aqui permanece muito elevado.
Contudo, até poucos anos atrás, as universidades públicas eram um espaço apropriado justamente por aqueles que possuíam maior renda. Isso ocorria devido ao bem conhecido fato de que as notas no vestibular costumam estar associadas à origem socioeconômica dos candidatos.
Dados o precário ensino público e a falha do Estado em gerar maior equalização das oportunidades, aquele que nasce em uma família de alta renda tende a ter melhores investimentos. Deste modo, um processo de seleção irrestrito trata os que nasceram em ambientes desfavorecidos de modo injusto.
Esse contexto fazia com que as universidades públicas brasileiras fossem dominadas pelas elites. As cotas modificaram tal cenário. Em certa medida, a política trouxe maior legitimidade nos processos seletivos ao procurar colocar para competir aqueles que tiveram investimentos equivalentes. Isso contribuiu para que jovens talentosos tivessem maiores chances de prosperar independentemente de sua origem socioeconômica.
Diversos estudos demonstram que a Lei obteve êxito no processo de inclusão dos mais desfavorecidos sem que houvesse perda de qualidade nas universidades. Em um trabalho recente, pesquisadores da Universidade Stanford mostraram que os ganhos de renda e na qualidade da formação dos alunos cotistas supera a perda daqueles que não foram selecionados no processo seletivo em uma universidade federal (Affirmative Action in Centralized College Admission Systems: Evidence from Brazil, 2021).
Ao mesmo tempo, a Lei contribuiu para a diminuição da segregação social e racial. Isso representa um significativo avanço para um país em que a profunda desigualdade afeta a forma como se dão as relações com o próximo. O convívio entre as distintas classes sociais é muito baixo no Brasil e tal fato influencia a forma como se pensa o país.
No contexto da Colômbia, por exemplo, um estudo descobriu que o aumento da participação de estudantes de baixa renda em uma universidade de elite fez com que os estudantes mais ricos tivessem percepções mais precisas da distribuição de renda e apoiassem redistribuição progressiva (The Impact of Diversity on Perceptions of Income Distribution and Preferences for Redistribution, 2022).
É importante lembrar que a adoção de um critério para favorecer os negros na reserva de vagas assustou aqueles que acreditavam estar vivendo em uma democracia racial. O debate efervescente que se seguiu contribuiu para que a questão racial ficasse em evidência. Os movimentos negros cresceram e estão se tornando uma força cada vez mais influente no cenário nacional.
Milhares de jovens que tiveram uma origem desfavorecida estão saindo das universidades e se tornando poderosas vozes no enviesado debate público brasileiro. Narrativas impostas estão sendo abaladas e existe a possibilidade de haver expressivas repercussões na formulação política em um futuro não muito distante.
A tendência é de que seja cada vez mais difícil ignorar as profundas injustiças sociais. Um país que se dizia orgulhoso de sua miscigenação, mas que sempre destinou diversos privilégios para suas elites, será, progressivamente, convidado a repensar seus conceitos.
* O texto é uma homenagem à música "Insurrection", de The Souljazz Orchestra.
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