Viajar para Lisboa é um mergulho nos contrastes.
Entre o orgulho da cidade que foi o centro dos descobrimentos do século 15 e a modorra dos largos escondidos. Entre a tasquinha afundada numa rua de paralelepípedos e o moderno MAAT (Museu de Arte Arqueologia e Tecnologia) na beira do Tejo. Entre a língua mansa de Fernando Pessoa e a babel fervilhante dos turistas.
Mas num mundo onde as grandes cidades parecem cada vez mais iguais entre si, Lisboa não desaponta. É única.
A cidade e o terremoto
Em 1º de novembro de 1755, três abalos sísmicos deram origem a um incêndio gigantesco. Uma hora depois, o tsunami veio do Tejo e inundou a parte baixa. Quinze mil pessoas morreram no terremoto, atribuído à ira divina. Por causa dele, Voltaire sugeriu que o mal existe e o homem é fraco e impotente.
Foi também a senha para o Marquês de Pombal colocar em marcha um plano urbanístico moderno, muito antes de Paris ou Barcelona na Baixa, que impressiona até hoje.
Três décadas atrás, outro incêndio também obrigou a cidade a promover reformas no Centro. Álvaro Siza, o primeiro arquiteto português a receber um Pritzker foi o responsável por parte do restauro. Sua exposição que acontece até agosto na espetacular Fundação Calouste Gulbekian é uma reflexão sobre o poder do desenho e uma viagem para os arquitetos que pensam construções e cidades.
A cidade e o turismo de massa
Voltar a Lisboa depois de décadas é constatar o óbvio: o dinheiro fez diferença. O comércio se sofisticou, as infraestruturas se multiplicaram, os hábitos de trabalho se globalizaram. A economia vai bem. Exporta-se vinho e azeite e importam-se carros elétricos.
Quase 20% do PIB português vem do turismo, e é fácil ver enxames de turistas bufando nas ladeiras de Lisboa. Além de restaurantes, compras, lazer e hotéis, os turistas gastam em aluguéis temporários e o efeito passa a ser dúbio. A oferta de imóveis para os moradores cai, os preços sobem e as pessoas estão indo morar mais longe do emprego. Em outros países, a coisa já chegou ao legislativo. Na Espanha, discutem-se leis para impor limites ao Airbnb. Na Catalunha, há indignação com a irrigação dos campos de golfe para estrangeiros enquanto falta água nas cidades.
A cidade e os brasileiros
Brasileiros já são espantosos 4% da população de Portugal.
No rádio, um painel de portugueses debate as reações xenófobas, no rastro do crescimento de partidos de direita. No Jornal de Notícias, do Porto, o argumento do colunista a favor da imigração em massa é que os portugueses não querem mais fazer certos serviços, como por exemplo, cuidar de idosos, e que as brasileiras fazem isso "com muita competência e cuidado".
Nas TVs pela cidade, destaque para as inundações no Rio Grande do Sul.
A cidade e o andar
Pedras portuguesas não têm esse nome em Portugal. São chamadas simplesmente assim: pedras de calçada. Normalmente o trabalho dos calceteiros deixa tudo aplainado e lisinho. Quando falham, porém, é tropeção na certa. Uma turista francesa torceu o pé num buraco bem em frente ao Museu dos Coches. Fui ao bar ao lado pedir gelo, o garçom não se sensibilizou com o acidente: "as pessoas estão a cair sempre" disse, mas concedeu-me algumas pedras, que aliviaram a forte dor da moça.
Como caminhar é muito mais que a calçada, o prazer se alarga com as vistas, as lojas, as comidinhas e os largos, esses espaços surpreendentes que surgem no traçado irregular das cidades medievais. Não se tem notícias de furtos de celular. Não há música alta em lugares públicos. Não há motoristas e motociclistas que furam o sinal.
E as vistas do Tejo sobre os telhados vermelhos e sob o céu azul são das coisas mais bonitas que um turista vai ver em qualquer lugar do mundo.
A cidade e a língua
Um dos maiores prazeres para o visitante brasileiro é observar os nomes. O lirismo da toponímia está em toda parte. Nas aldeias, a rua que sai da fonte se chama, invariavelmente, Rua da Fonte. Em Lisboa, a rua da Triste-feia é uma homenagem duvidosa a uma ex-moradora. Em Évora, há o famoso Beco do Homem não Barbeado.
A ideia da unificação linguística pretendida no acordo de quinze anos atrás se segura por um fio. Vou à brasileiríssima livraria da Travessa e compro um livro em edição portuguesa. Sinto-me à vontade com a palavra escrita, mas basta sair à rua para perceber que o ritmo da fala já nos separou indelevelmente. É preciso um tempinho para apreciar a cadência e a supressão de vogais. Mesmo assim, não daremos conta de entender porque a moto é mota e gol é golo.
A cidade e o homem
Entre tantos prazeres, há um último, transcendental: em Lisboa, pisa-se nas mesmas pedras onde pisou Fernando Pessoa. Em O Livro do Desassossego, seus passeios mansos o levam à constatação inspirada de que somos cidade e a cidade somos nós.
"Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas.
Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar."
Como não amar uma cidade dessas?
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