Apesar das muitas mudanças que ocorreram nos últimos 15 anos na forma de ver televisão, o conteúdo não mudou tanto. A última grande novidade foi o reality show. O termo abarca os programas sem roteiro, protagonizados por gente comum, supostamente vivendo situações reais e dramáticas.
Survivor, lançado em 31 de maio de 2000, na rede americana CBS, costuma ser aceito como marco de inauguração desta nova era na produção de entretenimento para a televisão. Ninguém escreveu ou dirigiu os dramas gravados na ilha de Bornéu. As histórias surgiram organicamente, criadas a partir de uma situação artificial, uma falsa realidade.
As origens do gênero, porém, remontam à era do rádio, nos anos 1940. Essa é uma das curiosidades do livro "Cue the Sun! - The Invention of Reality TV", escrito por Emily Nussbaum.
"Cue the sun" é uma fala de "O Show de Truman", de Peter Weir. A certa altura do filme, de 1998, o personagem de Jim Carrey consegue fugir do alcance das câmeras. Desesperado, o diretor do programa, Christof, vivido por Ed Harris, ordena uma alteração drástica nas luzes do cenário gigantesco onde Truman vive. "Mande o sol", ele grita. E a noite dá lugar ao dia em instantes.
Nussbaum lembra que, quando Survivor foi exibido pela primeira vez, já eram conhecidas, então, outras experiências do que ela chama de "documentário sujo": "um cinema verité que foi contaminado com interesses comerciais".
Dois programas ajudam a entender como se chegou ao Big Brother, um dos mais famosos formatos do gênero. Em 1973, foi ao ar na TV pública dos Estados Unidos a série documental "Uma Família Americana", em 12 episódios, resultado de 300 horas de filmagens do cotidiano de uma família de classe média alta da Califórnia.
Em 1992, a MTV americana lançou The Real World, que buscava documentar o cotidiano de sete jovens adultos vivendo num mesmo apartamento em Nova York. O reality teve 33 temporadas, até 2019.
"As primeiras produções dependiam totalmente da inocência de suas estrelas, de sua incapacidade de entender em que estavam consentindo: esse era o molho do gênero, seu pecado original", escreve a autora.
Premiada com o Pulitzer por seu trabalho como crítica de TV da New Yorker, Nussbaum lembra que "há pessoas cujas vidas foram destruídas por reality shows; existem métodos de produção tão feios que são difíceis de ver; e os reality shows, como qualquer tipo de televisão, refletem os limites e a intolerância de seus criadores"
Para o público, no entanto, esses programas sempre tiveram um encanto óbvio, mas perturbador. "Ofereciam algo autêntico, escondido dentro de algo falso. Eles eliminaram a barreira entre o astro e o espectador. Mais do que qualquer outro produto cultural, funcionavam como um espelho das pessoas que os observavam", anota a escritora.
O livro reconstitui em detalhes a história de inúmeros realities marcantes, como The Amazing Race, American Idol, The Bachelor, Queer Eye, RuPaul’s Drag Race e The Kardashians, sobre a família americana incontornável do pop.
Nenhuma dessas histórias tem o gosto tão amargo quanto o da criação de O Aprendiz, por Mark Burnett. Nussbaum relembra os muitos episódios de machismo do apresentador, Donald Trump, e discute se o reality ajudou a impulsionar sua carreira política.
"Mas também há glória e beleza nessa história", escreve. "Os reality shows ameaçaram a economia da televisão, mas também a tornaram maior —mais ousada, mais ampla, mais estranha", observa.
"Eles tornaram visíveis o tipo de pessoas que a mídia historicamente ignorou. Esses programas revelaram tópicos proibidos como homossexualidade e divórcio, tornando públicos assuntos privados. E, apesar da reputação de crueza do gênero, a produção de reality shows acrescentou sofisticação ao meio televisivo", conclui.
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