Em seus melhores momentos, a teledramaturgia da Globo andou em sintonia com o tempo. Várias foram as novelas que ajudaram a promover avanços nos costumes, atacando o machismo, rejeitando o racismo e denunciando a homofobia, entre outros temas de impacto social.
Em 2000, o professor de filosofia Renato Janine Ribeiro observou: "Em que pesem seus problemas, a novela é o gênero de nossa TV que melhor exprime um ideal de justiça e um sonho de felicidade".
Ainda que sem a mesma força do passado, essa é uma tradição que não se perdeu. É curioso observar, porém, como vários dos temas mais sensíveis em novelas do passado seguem trabalhados sem enredos contemporâneos.
Duas novelas atualmente no ar, "Vai na Fé" e "Terra e Paixão", combinam um esforço semelhante. Tentam se mostrar sintonizadas com graves problemas da realidade ao mesmo tempo em que buscam dialogar com parcelas conservadoras da audiência.
A grande novidade de "Vai na Fé", de Rosane Svartman, é o retrato que apresenta de evangélicos, mais tolerantes e menos irredutíveis do que os parlamentares que os representam no Congresso. Como escrevi, é um aceno da Globo, buscando amenizar a imagem negativa que adquiriu junto a parcela do grande público seguidor dessa corrente religiosa.
A trama, evidentemente, paga um pedágio ao percorrer esse caminho. Na semana passada, sem dar explicações, a direção da emissora determinou o corte de uma cena, já gravada, de um beijo entre duas personagens femininas.
A censura assinala um retrocesso de pelo menos dez anos em novelas do canal. Em 2014, dois homens se beijaram no final de "Amor à Vida" e, na novela seguinte, "Em Família", duas mulheres selaram sua união igualmente com um beijo.
Já a recém-lançada "Terra e Paixão" tenta agradar a outro universo notoriamente conservador, os empresários do agronegócio. A novela se passa na fictícia Nova Primavera, em Mato Grosso do Sul. O cotidiano gira em torno dos negócios da terra.
A novela de Walcyr Carrasco também trata de temas sensíveis, como violência doméstica, alcoolismo e dependência de remédios, entre outros. Mas é a tentativa de pintar um retrato positivo do agro que desperta atenção.
Numa cena do quarto capítulo, o protagonista Caio, vivido por Cauã Reymond, reclama com seu tio, Ademir (Charles Fricks), que seu pai, o grande fazendeiro Antônio, vivido por Tony Ramos, quer prejudicá-lo na sucessão dos negócios.
Por três minutos Reymond e Fricks foram obrigados a recitar frases que são pura publicidade, sem nenhum valor dramatúrgico.
"O agro é uma das riquezas do país. Quantos empregos a gente não gera? Quantas bocas a gente não alimenta? Toda hora que eu planto soja ou milho, eu tô fazendo um país melhor, mais forte. Tudo o que a gente planta a gente até exporta. Traz riqueza pro nosso país", afirma Caio.
Em outra fala, os personagens buscam limpar a imagem dos empresários do ramo, dizendo que Antônio é uma espécie de ovelha negra, que não representa a categoria.
É de conhecimento geral que evangélicos e empresários do agronegócio apoiaram abertamente o governo Bolsonaro e votaram pela sua reeleição. Os acenos da Globo a esses dois universos não é acidental. É seguramente estratégico e necessário aos negócios da emissora.
Lamento pelo preço que as novelas estão tendo que pagar por isso.
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