A qualidade de séries, novelas, filmes e programas de entretenimento pode estar sendo afetada por uma disputa que o espectador não está acompanhando com atenção. Ela coloca de um lado a categoria dos roteiristas brasileiros e do outro as empresas de streaming, em sua maioria estrangeiras.
Os roteiristas estão furiosos. Já faz tempo, reclamam, vêm aceitando assinar contratos que consideram altamente desvantajosos em nome da possibilidade, basicamente, de continuar trabalhando. Os protestos, que se avolumavam em grupos de WhatsApp, começaram a vir a público este ano.
João Ximenes Braga, premiado autor de novelas da Globo na década passada, contou recentemente que apresentou o projeto de um seriado a uma produtora grande, mas não conseguiu a garantia de que faria a redação final. "As plataformas podem querer dar o seu projeto para algum roteirista da turma deles", ouviu. Ximenes decidiu falar porque entende que esta situação "está asfixiando a marca autoral do audiovisual brasileiro".
Já o ator e autor Pedro Cardoso, que trabalhou por mais de 30 anos na Globo, reclamou que um projeto seu e da atriz Graziella Moretto, desenvolvido pela Warner, virou um "Frankenstein narrativo". "É resultado de uma série de interferências ao longo do processo, que nos roubou a autoria", ele me disse.
A possibilidade de interferências no projeto estava prevista no contrato que eles assinaram. Aceitaram porque se viram sem opções. "A ausência do investimento brasileiro e a destruição dos mecanismos públicos de financiamento colocaram a classe artística absolutamente refém de três ou quatro multinacionais", diz ele.
Na semana passada, a Associação Brasileira de Roteiristas, a Abra, fez um pedido de mediação ao Ministério Público do Trabalho no Rio e em São Paulo "para que seja avaliado o regime de contratação dos autores roteiristas para produções audiovisuais de plataformas de streaming". No pedido, Paula Vergueiro, advogada da Abra, apontou cinco tipos de problemas vistos nos contratos com os roteiristas.
Os contratos exigem cessão integral de todos os direitos, o que exclui os roteiristas de benefícios em vendas e licenciamento, por exemplo. Além do comprometimento artístico, situação vivida por Pedro Cardoso: "Ocorre uma diluição da autoria, com perda do controle criativo", diz ela.
O autor que leva uma ideia original a uma produtora não tem garantia alguma, como constatou João Ximenes, que poderá acompanhar o desenvolvimento do projeto. É remunerado por um trabalho que pode ter durado anos, perde contato com o projeto e não pode mais reavê-lo.
Em muitos contratos, os roteiristas concordam em não se sujeitar à gestão coletiva de direitos. Essa cláusula tem sido incluída em contratos com autores, diretores e atores, esvaziando a atuação de associações que recolhem direitos de recebimento por exibição, como ocorre em muitos países da Europa e da América do Sul.
A maioria dos contratos estabelece que os conflitos se resolvem por arbitragem, impedindo o questionamento na Justiça. "É abusivo", diz Paula Vergueiro. "Arbitragem é um modo de solução de conflitos entre iguais, que tem uma simetria. A lei brasileira diz que arbitragem tem que ser de comum acordo. Nestes casos, é enfiado goela abaixo."
De um modo geral, os roteiristas podem sofrer dispensa imotivada. Isso ocorre em outros mercados também, mas nos Estados Unidos, por exemplo, os roteiristas recebem semanalmente, o que atenua o impacto da dispensa. Os contratos também estabelecem que o roteirista fica "reservado" para uma eventual segunda temporada, mas ele nada recebe enquanto espera.
Trata-se, enfim, de um assunto complexo e importante. "É matéria para o próximo ministro da Cultura meter a mão", espera Pedro Cardoso.
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