Uma notícia desta semana teria deixado qualquer visitante do século passado embasbacado. A energia geotérmica de um vulcão está sendo utilizada para alimentar os servidores que produzem moeda digital em El Salvador.
Essa combinação futurista de tecnologia e sustentabilidade, ainda em fase experimental, já está na boca do mundo graças à poderosa máquina de propaganda do regime de Nayib Bukele.
Ao se tornar o primeiro governante mundial a adotar uma moeda digital, o bitcoin, como moeda corrente, o jovem presidente virou o novo ídolo do universo utópico-libertário dos investidores em criptomoedas.
O problema é que esse espetáculo está saindo caro para a frágil democracia salvadorenha. Eleito em 2019 na esteira populista de Donald Trump e Jair Bolsonaro, Bukele rapidamente tirou a máscara de tecnocrata reformista.
Em maio deste ano, logo depois de conquistar a maioria absoluta no Congresso com o seu partido Novas Ideias, ele realizou a fantasia de Bolsonaro e ordenou a substituição de todos os juízes da Suprema Corte.
No começo de setembro, a nova corte aprovou, contra o texto da Constituição, o direito de Bukele concorrer a um segundo mandato em 2024. Os protestos não parecem intimidar o presidente, que recentemente se apelidou nas redes sociais de “ditador mais cool”.
A timidez da comunidade internacional contribuiu decisivamente para a consolidação do seu projeto autoritário. O governo de Joe Biden, por exemplo, demorou longos meses para manifestar apreensão com o declínio da democracia em El Salvador.
Os últimos desdobramentos obrigaram Washington a subir o tom e instaurar sanções individualizadas contra os novos juízes da Suprema Corte, incluir o chefe de gabinete do presidente numa lista de políticos envolvidos no narcotráfico e direcionar a ajuda internacional à sociedade civil em vez de ao governo.
No Brasil, o chanceler Carlos França, que recentemente quebrou a sua promessa de civilizar o corpo diplomático ao aderir à histeria gestual do bolsonarismo durante uma viagem oficial, decidiu manter a aposta no colaboracionismo.
Sob o seu comando, o Itamaraty evita se posicionar sobre a incontestável ruptura constitucional em El Salvador, provavelmente por medo de desagradar o chanceler paralelo Eduardo Bolsonaro, admirador público de Bukele.
França, no entanto, não hesita em elevar o regime salvadorenho a parceiro estratégico na gestão da crise de migrantes haitianos. A ideia de deportar adultos e crianças para um país onde a política de inclusão de refugiados praticamente se resume ao recrutamento forçado pelas gangues locais é de "cair o queixo", como bem destacou a correspondente da Folha para a América Latina, Sylvia Colombo.
O cinismo é óbvio, mas precisa ser explicitado. Na doutrina Bolsonaro, só um lado do espectro ideológico pode ser denunciado por arroubo autoritário. O regime ditatorial nascente de El Salvador, que exalta o milicianismo digital, é um aliado perfeitamente aceitável para o governo brasileiro.
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