O Sesc promoveu em São Paulo, na terça e quarta-feira passadas, um colóquio sobre Gilda de Mello e Souza. Foi um encontro instigante de professoras, intelectuais e admiradores da autora de "O Espírito das Roupas". Transcritas, as palestras renderiam um belo livro.
Contudo, tal livro não captaria todas as nuances da jornada sobre Gilda de Mello e Souza —o prenome antiquado e o sobrenome duplo, ligados por "de" e "e", formam octossílabo que evoca a elite d’antanho.
Talvez por isso os palestrantes preferiram tratá-la por Gilda ou dona Gilda, dando um respeitoso ar de família ao colóquio. Ar pré-feminista, acrescente-se: ninguém se referiu a seu marido, Antonio Candido de Mello e Souza, como dom, senhor ou banal Antonio.
O ar de família propriamente dito subjazia os delicados arabescos gestuais, a elegância sóbria, a preciosa elocução das descendentes da ensaísta. Conforme bradavam os chiques em priscas eras: bravo! Com circunflexo no "o", por favor, para dar um charme. Hoje exclamam: massa!
Uma tela deslizou sobre a parede e surgiu a, por assim dizer, anfitriã da festa. Em agosto de 2002, a senhora de Mello e Souza concedeu uma entrevista a Carlos Augusto Calil.
Conversaram densamente sobre "Violência e Paixão", de Luchino Visconti. Foi estupendo.
Ela veste saia, blusa e blazer cremes. Sapato bicolor de salto baixo. Colar de pérolas de uma volta. Anéis dourados nos mindinhos, brincos, pulseiras, relógio de pulso de correia marrom. O batom é de um vermelho pálido. Os cabelos grisalhos, bem penteados, não têm uma mecha fora do lugar.
A fala sem afetação não se distingue da linguagem escrita. Isenta de maneirismos acadêmicos, explica o filme tintim por tintim. Sua figura parece ter sido arquitetada para, sem chamar a atenção para si, compartilhar a grande arte de Visconti, repensar a intimidade em "Violência e Paixão".
O filme destaca a vida de um americano erudito, feito por Burt Lancaster. Ele vive num apartamento suntuoso, em Roma, onde coleciona quadros ingleses do século 18. Sem altivez heroica, são retratos íntimos de aristocratas com a família, com seus bichos e posses.
O cotidiano pacato do sábio é violentado pelos eletrochoques dos vizinhos. É uma família podre de rica, ligada a fascistas e traficantes, conduzida por uma condessa, vivida por Silvana Mangano, e seu amante, interpretado por Helmut Berger. Bárbaro e voraz, o bando seduz o velho professor.
A entrevistada contrasta duas intimidades. Uma foi petrificada na arte, está emoldurada nas paredes. A outra é a do exibicionismo atual, que se espoja na baixaria. Como situar-se entre o recato de uma tela de sir Joshua Reynolds e, digamos, o clipe de Anitta fazendo boquete num beco?
Ela afirma que a noção de intimidade da sua geração —morreu em 2005, com 86 anos— está perecendo. Ao comentar "Morte em Veneza", também do diretor, completa: "Me incomodou muito ver o compositor no qual Visconti se projeta, mascarado, e a maquiagem derretendo".
De fato, a cena choca. O compositor, vivido por Dirk Bogarde, está maquiado de maneira caricata porque quer atrair o efebo Tadzio interpretado por Björn Andrésen. Porém, a peste que envenena a sereníssima já o contagiou. No limiar da morte, goteja tinta e suor, tiritando ao som da "Quinta Sinfonia", de Mahler.
Quase tão chocante quanto a morte é o que ela fala em seguida: a cena era um "ato de autopunição doloroso, que eu não tinha o direito de contemplar". O problema não estava em "Morte em Veneza", pois. Estava nela, que não devia ver o que viu. Por que será —decoro, autorrepressão, vergonha?
Seja que afeto for, cabe noutra lição dela na entrevista exibida no colóquio: "a visão que temos de uma obra de arte é muito deformada pelo olhar do observador". Mas, antes do espectador, contam mais o talento do cineasta e do elenco.
Alain Delon, o anjo de "Rocco e Seus Irmãos", disse: "Minha formação de ator, e até de homem, veio na maior parte de Visconti". Silvana Mangano falou que, quando o diretor a orientou para o papel da baronesa de "Morte em Veneza", ele discorreu ternamente, com minúcia, sobre a mãe.
Burt Lancaster contou que viu, no cenário de "O Leopardo", uma gaveta com camisas inglesas finas. Ficou encantado e perguntou a Visconti por que não a filmava. Ele respondeu que a gaveta não era para qualquer um, e sim para o ator, que ao vê-la poderia inventar o príncipe de Salina.
A figuração da intimidade não é para todos. É arte, uma grande performance. Desvenda ou se rende a uma época.
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