O vídeo recém-divulgado da reunião de Bolsonaro com seus ministros, em 22 de julho de 2022, revela mais do que a escancarada intenção de evitar a derrota eleitoral a qualquer custo, aí incluída a abolição do Estado de Direito.
Ele desnuda também o sentimento mais entranhado do então presidente —o que lhe permite mobilizar uma parcela dos seus seguidores fiéis. O nome dessa marca de Caim é ressentimento.
Enquanto o encontro não começava para valer, o ex-capitão, com a sua costumeira fala trôpega, ia batendo na tecla da imaginária fraude eleitoral que seus adversários estariam preparando.
Eis que, aos 9 minutos e 56 segundos da gravação, explode em autodesprezo e amargura pela maneira como foi tratado durante sua longa experiência de deputado federal. "Baixo clero" e "gozado" são os únicos epítetos a que recorre para descrever-se e que podem ser aqui reproduzidos sem ferir as recomendações do Manual da Redação desta Folha e a sensibilidade dos leitores. O resto é um amontoado de rancorosos palavrões.
Em romanceada biografia do líder fascista Benito Mussolini publicada na Itália em 2018 e dois anos depois no Brasil, sob o título "M, o Filho do Século", o escritor Antonio Scurati observa que o Duce foi o primeiro a perceber que podia fazer do rancor dos humilhados uma arma política.
Por sinal, a vasta literatura sobre populismo de direita destaca a importância da mobilização de ressentimentos na costura de laços afetivos entre líderes e seguidores. Colocar-se do lado dos que se sentem injustiçados e humilhados é recurso central do apelo antielites do chefe populista.
Tais estudos, seja no contexto europeu, seja no norte-americano, associam esses sentimentos à experiência concreta de grupos sociais que a globalização fez perder renda, emprego e posição social. No que configura um exemplo irretocável de falsa consciência, os prejudicados atribuem a sua desdita ora aos imigrantes, ora às mulheres emancipadas, ora às elites intelectuais cosmopolitas —ora, nos Estados Unidos, aos negros.
Aqui os grupos mais sensíveis à retórica da vitimização não figuram entre os perdedores de renda ou de posição social. Talvez seu ressentimento se nutra da aspiração insatisfeita a um reconhecimento que imaginam lhes ser devido pelas elites educadas, pelos atores políticos, no meio universitário, no mundo da cultura e no território das religiões.
De toda forma, a aptidão intuitiva de Bolsonaro para, ao falar apenas e sempre de si, vocalizar o sentimento de muitos, é o que faz dele um político cuja força não pode ser subestimada.
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