Com a escalada da guerra comercial precipitada pelos EUA de Donald Trump —e são vários os beligerantes, mas o principal antagonista é a China— estaríamos de volta a uma visão mercantilista das relações econômicas internacionais. Dois pressupostos amparam essa perspectiva.
O primeiro: uma abordagem mercantilista compreende a riqueza mundial como um dado finito. Por isso, no limite, exportar é bom; importar, ruim.
O segundo: associando os polos de produção e comércio, são majoritariamente os bens manufaturados num “País A” por empresas do “País A” que o “País A” leva ao mercado internacional.
É dizer, a disputa comercial nada mais seria do que a projeção internacional de um produto “Feito-no-País A- por-empresas-do-País A” contra o “Feito-no-País B-por-empresas-do-País B”.
Num grande e superficial resumo, podemos dizer que essa visão mercantilista foi abalada ao longo do tempo por duas forças majoritárias, que operam tanto no nível conceitual quanto na prática produtiva e comercial cotidiana.
Uma vertente, a da teoria das vantagens comparativas, sugerida classicamente por Adam Smith e David Ricardo, fala não em um mundo comercial de soma zero, mas numa equação segundo a qual, quando países comercializam aqueles bens e serviços em que são mais produtivos, todos ganham.
Por geografia, meteorologia ou aptidão técnica, países são aquinhoados ou desprovidos de talento para concentrar-se num ou noutro produto. É em alimentar vantagens e não perder tempo com desvantagens onde reside a sabedoria da política comercial.
Portugal dispõe de vantagens na produção de vinhos? Que o faça. Ingleses são bons na construção de máquinas e equipamentos? É nisso que devem concentrar-se.
A outra tem que ver com o fenômeno das cadeias de valor. No âmbito do processo produtivo de um mesmo bem (digamos, uma bola de futebol), a mistura de especialização, custos relativos, excelência logística por vezes faz com que à sua confecção contribuam uma dúzia de países.
O design é alemão; a tinta, francesa; o couro sintético, canadense; a resina, japonesa, e a montagem final, chinesa.
Alguns países, como Japão e Alemanha no segundo pós-Guerra, primeiro se tornaram grandes potências comerciais baseadas no “Made in” para em seguida estenderem também suas cadeias de valor internacionalmente. Foram os EUA, no entanto, o primeiro país a cumprir essa dinâmica em grande escala em volume .
Consequentemente, por haverem se tornado economicamente uma nação-rede, com milhares de empresas de capital acionário em sua maioria norte-americano e operações nos quatro cantos do mundo, os EUA apresentam um perfil curioso.
Mantêm um percentual comparativamente pequeno de seu PIB resultante da soma de exportações e importações. É algo como 25% do PIB, não muito distante do que tal percentual representa também no PIB brasileiro.
Vale ressaltar que quando a General Motors produz algo no Brasil e o bem é vendido para a África do Sul, contabilmente tal transação é computada como exportação brasileira e importação sul-africana. Se lucrativa, no entanto, a operação remunera com dividendos sobretudo a acionistas norte-americanos.
Daí decorrem duas constatações. Por um lado, mais importante do que classificar os sucessivos déficits comerciais dos EUA como um sinal de debilidade econômica é examinar quão saudáveis se encontram os balanços patrimoniais nas grandes empresas transnacionais dos EUA.
Repito aqui um dado já informado nesta coluna. Déficits comerciais dos EUA com o resto do mundo não são um fenômeno recente. Com efeito, tais déficits seguem uma trajetória razoavelmente associada à da expansão da globalização nos últimos quarenta anos. A última vez que os EUA registraram superávit comercial com o resto do mundo foi no longínquo 1977.
Não é de surpreender, assim, que tantas vozes empresariais nos EUA estejam se levantando contra o agravamento da guerra comercial. O informativo sobre comércio do site Politico nos EUA traz um bom sumário de tais inquietações vocalizadas por presidentes de entidades setoriais.
Dean Garfield, do Conselho de da Indústria da Tecnologia da Informação, chama a política comercial de Trump de irresponsável. Rick Helfenbein, da Associação de Vestuário e Calçados, a qualifica de profundamente insensível a empresas, trabalhadores e famílias americanas. Cal Dooley, do Conselho da Indústria Química, sustenta que apenas com tarifa zero seu setor pode gerar inovação econômica e ambientalmente sustentável.
Tom Donahue, da Câmara de Comércio dos EUA, salienta que as novas tarifas impostas serão respondidas com retaliação por parte da China e outros parceiros, o que tornará a indústria americana crescentemente incapaz de competir globalmente.
E Jay Timmons, da Associação de Fabricantes Automotivos dos EUA, alerta que a cada dia sem entendimentos com a China a guerra comercial fará com que os trabalhadores da indústria manufatureira dos EUA estejam mais próximos de se tornarem os principais prejudicados.
Tais lideranças empresariais sabem que, em jogo, está mais do que o apenas o balanço de exportações e importações. Um conflito comercial duradouro minaria as fundações da própria competitividade da indústria norte-americana —a sua eficiente e produtiva presença global em cadeias de valor.
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