Economista, diplomata e cientista social, dirige o BRICLab da Universidade Columbia em NY, onde � professor-adjunto de rela��es internacionais e pol�ticas p�blicas. Escreve �s quartas.
A ONU � um teatro; Trump, um ator
Estive pela primeira vez na sede da ONU, em Nova York, quando tinha 15 anos de idade e era estudante de interc�mbio nos EUA. No dia anterior, havia assistido tamb�m minha primeira pe�a na Broadway —"Mousetrap" (A Ratoeira), de Agatha Christie.
Fa�o refer�ncia a esses dois acontecimentos porque, na visita � ONU, o volunt�rio que nos guiava atrav�s das salas austeras e obras de arte de gosto duvidoso que caracterizam o pr�dio na Primeira Avenida disse uma frase que n�o esqueci: "esta � a ONU, o �rg�o m�ximo das rela��es internacionais. Um diplomata trabalhar aqui representa o mesmo que um ator encenar uma pe�a na Broadway".
Kevin Lamarque/Reuters | ||
O presidente dos EUA, Donald Trump, volta a seu assento ap�s discurso na Assembleia-Geral da ONU |
Esta associa��o entre teatro e diplomacia n�o me saiu da cabe�a por mais de uma raz�o.
Primeiro: s�o muitas as coincid�ncias vocabulares na linguagem teatral e diplom�tica. Diz-se que tal embaixador "representa" bem seu pa�s. Que as ONGs s�o "atores" cada vez mais importantes no "cen�rio" internacional. Que a "atua��o" dos diplomatas evita que soldados tenham de se enfrentar no "teatro" de opera��es.
Segundo: o que acontece na ONU, menos em termos de economia e com�rcio e mais em quest�es de paz e seguran�a, repercute no mundo inteiro. Isso � verdade tanto no n�vel das intera��es entre as grandes pot�ncias —que se desenrolam sobretudo no Conselho de Seguran�a— e em especial na fun��o de utilizar a ONU como caixa de resson�ncia ou "palco" (olhe a� o teatro outra vez) para transmitir recados.
Tais mensagens orientam-se em alguma medida, claro, ao mundo l� fora. Mas em sociedades crescentemente midiatizadas, eventos como os discursos da Assembleia-Geral da ONU s�o constru�dos para o objetivo prec�puo do consumo da opini�o p�blica interna de cada pa�s.
Alguns oradores s�o mestres em utilizar a ONU e suas engrenagens internas n�o apenas para fabricar produtos de diplomacia, mas tamb�m grandes jogadas de comunica��o.
Nos anos 80, o ent�o embaixador de Israel, hoje primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, era um desses protagonistas. Seu vigor e articula��o o tornavam eixo de atra��o de qualquer tratativa diplom�tica. E seus discursos ganharam a opini�o p�blica israelense, projetando-o ao que seriam responsabilidades ainda mais elevadas em seu pa�s.
Outro grande diplomata-comunicador a usar o palco da ONU foi Dominique de Villepin, chanceler e primeiro-ministro franc�s durante o per�odo Jacques Chirac. Villepin, com sua eleg�ncia e habilidade orat�ria, denunciou o unilateralismo dos EUA na Segunda Guerra do Golfo numa reuni�o do Conselho de Seguran�a. Foi t�o efetivo em sua mensagem que mereceu aplausos raramente ouvidos naquela vetusta c�mara.
Pude acompanhar esse teatro muito de perto no final dos anos 90, quando servi na ONU como diplomata.
Um dos grandes atores dessa �poca era Richard Holbrooke, embaixador dos EUA na ONU de 1999 a 2001. Ele antes desempenhara papel importante nos Acordos de Dayton, que puseram fim aos conflitos nos Balc�s.
O pr�prio peso relativo que o cargo de representante da ONU significa na alta administra��o norte-americana (a fun��o tem status de "Cabinet Post", ou seja, tem status ministerial) ajuda na grande visibilidade que ela proporciona. Fosse Al Gore eleito em 2000, e n�o George W. Bush, Holbrooke teria sido secret�rio de Estado.
O destaque no primeiro dia desta Assembleia-Geral foi sem d�vida o discurso de Donald Trump. Sua fala eclipsou as demais. � altura que redijo esta coluna, ainda n�o se veicularam sondagens de avalia��o nos EUA de qu�o bem aprovado foi o pronunciamento. Minha aposta � de que ele tenha sido muito bem recebido, provavelmente o melhor de sua turbulenta presid�ncia.
A ONU � um grande palco. Trump, um grande ator. Sua locu��o, diplomaticamente arriscada quando os assuntos s�o Coreia do Norte ou Ir�, seguramente desagrada
o establishment de pol�tica externa e de seguran�a dos EUA. Mas se alinha plenamente ao que pensa o cidad�o norte-americano m�dio —e isso inclui contingentes sociais que v�o al�m do seu eleitorado cativo.
A surpresa foi, sem d�vida, o grande espa�o e �nfase que deu �s mazelas da Venezuela. Como isso aconteceu? V�o aqui duas hip�teses.
Um: Trump tem um monte de amigos (e amigas) venezuelanos. Muitos s�o da extra��o elite/mundo fashion e t�m os ouvidos do presidente desde muito antes dele candidatar-se � Casa Branca.
Dois: ao falar da Venezuela de Maduro, Trump em realidade dirigia-se � enorme comunidade hisp�nica nos EUA, que abomina os experimentos chavista ou castrista. Trump busca assim estabelecer pontes com segmento da sociedade americana a quem direta ou indiretamente hostilizou com sua postura esdr�xula em rela��o ao M�xico e ao "muro".
Goste-se ou n�o, Trump foi o grande vencedor da inaugura��o desta nova Assembleia-Geral da ONU. Mesmo os que com ele frontalmente se antipatizam n�o podem deixar de reconhecer que ele vocalizou umas cruas verdades, como a de que n�o apenas os EUA, mas qualquer l�der, tem de colocar seu pa�s "primeiro".
Senhor de v�rios palcos, o ator Trump tamb�m protagonizou o teatro da ONU.
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