Nas últimas semanas, o tema do equilíbrio fiscal voltou à cena, motivado por duas ações da equipe econômica. A primeira foi piorar a meta de déficit primário para 2025. A segunda foi admoestar o Congresso, que aprova despesas sem discriminar a fonte de receita que irá financiá-las.
De fato, o Congresso tem contribuído para agravar o desequilíbrio fiscal, seja pela multiplicação das emendas parlamentares, seja pela distribuição de benefícios tributários e favores a grupos de interesse. Mas o Executivo também tem feito o mesmo.
A PEC da Transição, com seus R$ 145 bilhões de novos gastos, e diversas medidas posteriores foram iniciativas do Executivo que também não tinham previsão de receita que as financiassem.
Os gastos públicos viabilizam políticas essenciais em saúde, educação e programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Eles também financiam diversos grupos de interesse que se aproveitam da agenda social para extrair recursos do Estado em favor do seu benefício privado, por meio de subsídios e isenções tributárias.
Essa é parte relevante do nosso problema. Invariavelmente, o patrimonialismo pega carona nas políticas públicas, fragilizando a capacidade do Estado de cuidar dos mais vulneráveis ou garantir a infraestrutura do país.
A curto prazo, o impulso fiscal estimula a economia, mas o resultado pode ser o aumento da inflação, que é um mecanismo socialmente custoso, por reduzir a renda das famílias.
A longo prazo, gera insegurança sobre quais serão as consequências desse processo de aumento da dívida pública/PIB, que não pode continuar indefinidamente: teremos mais tributos, mais inflação, ou algum calote explícito ou disfarçado das obrigações do governo, como ocorreu com a PEC dos Precatórios?
O resultado da política fiscal expansionista depende das circunstâncias. E as circunstâncias no Brasil são peculiares.
Comecemos por um fato. Ajuste fiscal no Brasil não pode estar baseado em redução significativa do gasto público. Nosso aparato legal não o permite.
O gasto público está concentrado em pagamento de salários, aposentadorias, transferências para estados e municípios e diversas outras despesas que, por força da lei, não podem ser reduzidas. Muitas não podem ser alteradas nem por emendas à Constituição.
Ajuste fiscal relevante no Brasil significa reduzir o crescimento do gasto público. O teto de gastos estabeleceu que a despesa total do governo federal não poderia crescer mais do que a inflação. Aumentar a despesa real em um programa significava ter que reduzir em outro.
O arcabouço fiscal relaxou parcialmente o princípio: o gasto pode crescer acima da inflação, mas desde que menos do que a receita, e limitado a um máximo de 2,5% ao ano.
Só que a medida do arcabouço também restabeleceu a indexação de gastos públicos com saúde e educação. Outras despesas também passaram a crescer acima da inflação, como os benefícios da Previdência indexados ao salário mínimo.
O conjunto das regras aprovadas resultou em uma inconsistência. Equilibrar as contas públicas requer aumentos significativos da receita, dada a rigidez da imensa maioria dos gastos. Mas, quanto maior o crescimento da receita, maior tem que ser o crescimento de diversas despesas.
O total dos gastos, contudo, só pode aumentar até 2,5% acima da inflação. Logo, quanto mais aumentar a receita, e, portanto, as muitas despesas a ela indexadas, mais as demais têm de ser comprimidas, o que é inviável a partir de determinado ponto. O arcabouço revelou-se uma armadilha.
As regras criadas pelo governo resultaram em um dilema: o governo tem que revogar a indexação dos gastos com saúde e educação à receita, além dos reajustes reais do salário mínimo, ou desconfigurar, severamente, o arcabouço fiscal.
Não há aumento de receita que resolva a encrenca.
Como fica a garantia de que o governo irá estabilizar a trajetória da dívida/PIB? A dúvida parece já estar contribuindo para o aumento da volatilidade de preços importantes da economia, como as taxas de juros de mercado e a taxa de câmbio, prejudicando o investimento e o crescimento sustentável.
Os gastos públicos aumentaram cerca de R$ 320 bilhões em 2023 (perto de R$ 250 bilhões, descontando a correção dos precatórios), quase tudo em decorrência de medidas propostas pelo Executivo.
Segundo a IFI (instituição Fiscal Independente), o déficit primário estrutural em 2023 ficou em 1,6% do PIB. Trata-se da maior expansão fiscal desde 1997.
Estabilizar a dívida/PIB requer um superávit primário de cerca de 1,5% do PIB. Isso significa uma variação do resultado primário próxima de R$ 300 bilhões.
Para ter noção do ajuste necessário, o governo federal arrecadou, em 2023, pouco mais de R$ 450 bilhões das empresas, por meio do Imposto de Renda e da CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido). Como a conta adicional será paga?
A equipe econômica critica o Legislativo por seguir a mesma cartilha do Executivo? Um pode gastar mais sem previsão de receita, mas o outro não?
Em meio ao debate sobre a quem cabem os problemas fiscais, fica esquecida a agenda de melhorar a qualidade da política pública: garantir que o gasto público tenha impacto sobre a vida das pessoas assemelhado ao que se verifica nas melhores práticas dos demais países.
O momento é de cuidar das muitas vítimas no Rio Grande do Sul. Garantir água, comida, cuidados médicos, abrigos e cobertores. E informar aos moradores onde eles podem obter o auxílio de que precisam.
Mas, passada a grave crise, devemos, com serenidade, avaliar as falhas da política pública em cuidar da manutenção da infraestrutura e fazer uma gestão mais eficaz de crises.
Na comparação com outros países, nosso problema não é a falta de recursos, mas sim o seu uso ineficaz em conjunto com a captura da política pública por grupos de interesse.
O resultado é um Estado que gasta muito, mas gasta mal, e uma dívida pública alta, que ameaça crescer mais do que a renda do país por muitos anos, igualmente prejudicando a vida das pessoas, ainda que por mecanismos mais sutis.
A gestão desajustada na política e na economia acaba por cair no colo do país, resultando em muitas vítimas.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.