Alterar as regras seguindo os ritos da democracia é parte do jogo. Eventualmente, algumas leis têm até mesmo efeitos retroativos, alterando o entendimento do que estava, aparentemente, pacificado.
O problema ocorre quando a burocracia, de forma oportunista, se vale de interpretações criativas das regras vigentes para alterar, recorrentemente, a interpretação das leis, e assim criar obrigações com efeitos retroativos.
O tema pode parecer argumento de relatos distópicos, daqueles que descrevem um poder imperial e invasivo. Mas não se trata de romance alegórico. A burocracia, no Brasil, frequentemente comunica que as regras são diferentes do que todos acreditavam e praticavam.
Como ocorre frequentemente com as manifestações da burocracia imaginadas pela literatura, este texto é enfadonho, mas o resultado é perturbador.
O problema está nos detalhes, como exemplificado na análise sobre o contencioso administrativo previdenciário entre 2009 e 2019, feita pelo Núcleo de Tributação do Insper, coordenado por Vanessa Rahal Canado.
O trabalho identifica 626 acórdãos do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), tribunal administrativo que arbitra conflitos entre os contribuintes e a RFB (Receita Federal do Brasil), selecionados com base nas palavras-chave "contribuição", "previdência" e "incidência".
Nos dez anos analisados, houve questionamento da RFB sobre 26 itens que os contribuintes acreditavam isentos de contribuição previdenciária, por não serem considerados "contrapartida do trabalho" prestado: auxílio-creche, salário-família, auxílio-alimentação, planos de saúde, dentre outras exceções da Lei 8.212, de 1991, que trata do custeio da previdência.
A inclusão das exceções diretamente na lei, e não por interpretação dos contribuintes, de nada adiantaram. A RFB deixou de questionar a regras e passou a questionar as exceções.
A PLR (Participação nos Lucros e Resultados) é outro caso de remuneração dos empregados que foi concebido sem a incidência das contribuições previdenciárias (Lei 10.101). A burocracia, contudo, não se curva à legislação vigente.
Desde a sua criação, o pagamento da PLR tem sido questionado por seguidas novas interpretações dos auditores-fiscais, que, progressivamente, adicionam requisitos a serem observadas pelos contribuintes, com efeitos retroativos. Essas condições não constam da lei, mas, mesmo assim, segundo o Fisco, deveriam ser cumpridas pelas empresas.
Alguns dos temas debatidos: pagamento em valor fixo; extensão da PLR para além da base territorial do sindicato; data da assinatura do programa de PLR; pagamento por mais de duas vezes ao ano ou com periodicidade inferior a um trimestre, entre outros.
Em um caso, o pagamento da PLR foi questionado porque as metas estavam previstas em documento apartado do acordo com o sindicato.
Pouco importa que nenhum desses pontos conste do texto da lei.
A arbitrariedade dos questionamentos motivou alterações da legislação do PLR em 2020, tentando deixar claro quais as condições devem ser seguidas. Nada, contudo, está garantido. O provável é a retomada do processo disfuncional. O problema não está na lei, mas na falta de governança que orienta os processos e as práticas da RFB no Brasil.
A sequência de novas condições impostas pela burocracia impulsionou deliberações cambiantes do Carf.
O resumo abaixo pode parecer caótico. Ele, de fato, o é. Não se trata de um conto de Franz Kafka ou de uma novela de Ismael Kadare, o albanês que escapou de seu país e contou sobre o autoritarismo descontrolado, que fiscaliza inclusive os sonhos dos cidadãos.
O pagamento da PLR a diretor administrativo não empregado foi aceito em uma deliberação, e rejeitado em duas. Uma decisão do Carf aprovou a possibilidade de metas de resultados estarem previstas em documento apartado do acordo da PLR. Em outra, a decisão foi desfavorável.
Programas de PLR que foram assinados depois do término período de apuração foram aprovados em duas decisões, e rejeitados em duas. E assinar após o início da apuração? Em três casos, o Carf aprovou; em dois, rejeitou.
Um acórdão do Carf restringiu a abrangência da PLR, estipulando que ela não poderia ser isenta de contribuições previdenciárias se o empregado trabalhasse menos do que "quatro meses consecutivos no ano na empresa", tivesse "exames médicos periódicos", ou fizesse "a substituição programada do protetor auricular".
As decisões do Congresso estabelecem as regras e as suas exceções. Os contribuintes se valem de ambas para pagar os tributos como lhes convém. A RFB diz que não é bem assim, que há outras condições, ainda que não estejam no texto aprovado pelo Legislativo. Os tribunais terminam engolfados pelas disputas, decidindo com base no vento do momento.
O sistema de resolução de conflitos tributários no Brasil é arbitrário e a jurisprudência é instável. A própria legislação, ao criar exceções e casos particulares, induz à ocorrência de interpretações conflitantes. O resultado é o litígio disfuncional.
O contencioso tributário nos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) chega a pouco menos de 0,3% do PIB (Produto Interno Bruto).
No Brasil, esse número alcança perto de 15%, apenas na instância administrativa. Se somar as disputas no Judiciário, o total atinge cerca de 75% do PIB, com os dados de 2019. Os números de 2020 estão para sair e tudo indica que aumentaram um pouco mais.
Existem procedimentos para alterar as leis ou estabilizar a interpretação das regras. Mas o Executivo, com frequência, prefere andar pelo acostamento. E isso não ocorre apenas com a legislação tributária.
Recentemente, o governo discordou da Reforma do Saneamento, aprovada pelo Congresso. Em vez de enfrentar o debate, por meio das regras da democracia, enviando um projeto de lei, o Executivo optou por usurpar a competência de deputados e senadores, promulgando um decreto que alterou aspectos importantes da norma aprovada pelo Legislativo.
Nada contra o Executivo querer alterar as regras do jogo. Basta seguir os protocolos da democracia e ter maioria no Congresso para aprovar o que propõe.
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