Lá pelo terceiro ano da faculdade, na Universidade do Porto, eu e meus amigos nerds desenvolvemos um grande interesse pela lógica matemática, especialmente pelos avanços obtidos no século 20 a partir da descoberta dos paradoxos da teoria dos conjuntos de Georg Cantor (1845–1918).
Nas livrarias, encontramos a tradução para o português do espesso volume "O Teorema de Gödel e a Hipótese do Contínuo", publicado poucos anos antes pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa. O título era fascinante demais para deixarmos passar –em parte, porque no início não tínhamos ideia do que significava!. Então todos compramos, sentindo-nos muito crescidos. A minha cópia está comigo até hoje.
O alemão Kurt Gödel (1906–1978) nasceu na cidade de Brünn, hoje chamada Brno e no território da República Tcheca, que então fazia parte do império Austro-Húngaro. Em 1931, provou dois teoremas que mudaram a matemática e a filosofia para sempre.
O primeiro diz que qualquer formalização da matemática é necessariamente incompleta: sempre existem afirmações verdadeiras que, no entanto, não podem ser provadas (nem refutadas) de forma rigorosa. O segundo vai mais longe: a própria consistência da matemática, ou seja, a afirmação de que ela não contém contradições, também não pode ser provada.
Foi um golpe fatal no programa de David Hilbert (1862–1943) para fundamentar a matemática em bases formais sólidas, eliminando todos os paradoxos.
À medida que estudávamos esses teoremas, também nos divertíamos aprendendo e propagando lendas urbanas sobre o nosso herói.
Em 1938, Gödel mudou-se para os Estados Unidos, onde se tornou professor do então recém-criado Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Alguns anos depois, o amigo Albert Einstein o convenceu a solicitar a cidadania norte-americana.
Sabendo que o processo de naturalização incluía um questionário sobre a história e a cultura do país, Gödel preparou-se com afinco.
Foi então que, segundo contam, descobriu que a Constituição dos EUA é inconsistente, ou seja, ela contém regras que são mutuamente incompatíveis. Incapaz de viver em uma realidade autocontraditória, o mui lógico Gödel teria recusado a cidadania, para perplexidade do representante do governo e desespero de Einstein.
Felizmente, há uma testemunha ocular que deixou relato escrito do ocorrido. E acontece que a realidade é ainda mais interessante (e preocupante) do que a ficção. Contarei na semana que vem.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.