Quase 20 meses depois de a China começar a vacinar militares com um preparado da CanSino, a iniquidade no acesso a imunizantes para Covid segue sem solução. A África foi ficando para trás, zero surpresa –até surgir ali uma vacina de RNA.
Na média mundial, 62% da população recebeu ao menos uma dose. Nos Estados Unidos são 76% e na União Europeia, 75%. O Brasil tem mais de 80%. Já no continente africano há meros 17% de vacinados.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez apelo para que donos de vacinas de RNA, como Pfizer, Moderna e BioNTech, transferissem tecnologia para países periféricos. Acabou ignorada, e as doações prometidas para sua Covax Facility não chegaram na quantidade esperada.
Até o governo americano apoiou proposta de suspensão de patentes sobre o novo imunizante, mas ela não prosperou. Houve reação contra de várias nações, entre elas o Brasil, onde Jair Bolsonaro vetou iniciativa do Congresso nessa direção.
Não seria uma panaceia, claro, só um incentivo. Vacinas podem envolver mais de uma centena de patentes, e a quebra de todas comporia uma barafunda burocrática de monta. Sob ameaça de processos, porém, quem se aventuraria?
A única abertura partiu da Moderna, que publicou muita informação sobre seu produto. Também anunciou que não faria valer direitos de propriedade intelectual, durante a pandemia, contra quem desenvolvesse imunizante similar.
A OMS saiu a campo para aproveitar a oportunidade. Montou na Cidade do Cabo, África do Sul, um "hub" para recriar a tecnologia de RNA com base nos dados disponíveis, com verba de US$ 100 milhões (R$ 520 milhões) para a empreitada.
O resultado veio no início deste mês de fevereiro, quando a firma Afrigen Biologics, participante do consórcio, anunciou ter obtido um composto baseado nas informações da Moderna. O plano é testar a vacina em humanos ao final deste ano.
A Afrigen tem só alguns microlitros (milionésimos de litros) do preparado, desenvolvido com a Universidade de Witwatersrand em Johannesburgo. Espera produzir até novembro a quantidade necessária para os ensaios clínicos.
Não será uma vacina idêntica à da Moderna, embora baseada na sequência de RNA da companhia de Cambridge, Massachusetts (EUA). A Afrigen trabalha numa formulação que não exija o congelamento imprescindível para preservar os imunizantes da Moderna e da Pfizer.
Na África não há infraestrutura de ultracongeladores para dar conta dessa logística. Se e quando a vacina da Afrigen for aprovada para uso em humanos, talvez em 2023, traria um grande avanço para o continente.
E não seria um progresso só para africanos. O hub está em contatos com fabricantes de vacina na Argentina e no Brasil, como a Fiocruz, para ceder a tecnologia que já está transferindo para a Biovac sul-africana.
Há expectativa de que a nova vacina de RNA saia a preços mais baixos para esses países. O governo já pagou cerca de R$ 50-60 por dose da Pfizer, custo similar às do Butantan.
Vacinas são o meio mais eficaz de conter a pandemia, como evidencia o número relativamente baixo de mortes na explosão de casos com a variante ômicron. Ter autonomia em sua produção significa não ficar à mercê de oligopólios como o da Pfizer e Moderna, do qual já se queixou a União Europeia.
A conquista da Afrigen vem demonstrar o erro daqueles que condenaram o esforço de Butantan e Fiocruz para produzir imunizantes aqui. Há no Brasil outras duas dezenas de projetos para criar vacinas; oxalá consigam repetir o feito africano.
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