A coexistência temporária de dois ministros da Saúde é um capítulo cômico da tragédia humanitária.
Nunca houve tanta inação. O país está vulnerável, ansioso, exausto. Nunca morreu tanta gente.
Se fosse um homem culto, seria plausível imaginar o presidente manejando um experimento político de risco, inspirado (às avessas) na novela “O Duplo”, de Dostoiévski (1821-81).
General e médico se encontram como réplica e oposto, como fato concreto e alucinação. Conciliar mudança e continuidade é também, em outras palavras, a arte de iludir, enganar.
Pensando na eleição do ano que vem, o presidente aproveita o discurso supostamente científico do ministro que chega para legitimar a herança negacionista do ministro que sai.
Mas a coabitação dos dois ministros pode se explicar também por razões mundanas.
A exoneração do ministro que sai será publicada quando ele pisar em solo estrangeiro? Foi assim com o (fugitivo) ministro da Educação. O general merece um porto seguro, longe de eventuais investigações do morticínio e dos escândalos sanitários.
Outra hipótese que se aventa: o general teria a missão de domesticar o médico antes da posse, para que ele compreenda o exato significado de “rezar pela mesma cartilha”. Como um vigilante bancário, o ministro que sai observa o ministro que entra enaltecer sua gestão desastrosa.
O general é o retrato cru da incompetência estratégica, o médico carrega a imagem de portador mambembe do conhecimento.
Na contramão da retórica especializada, o médico revela, nos primeiros pronunciamentos, uma notável inabilidade para o uso da máscara: enquanto fala, a proteção escorrega, escorrega, até exibir, ainda que por instantes, as narinas, livres para o contágio.
O discreto e constrangedor acontecimento reforça, subliminarmente, o pensamento presidencial de que a máscara incomoda e não é tão essencial assim.
O médico cunha a expressão “aglomeração fútil” como se fosse possível, na pandemia, conceber a ideia de aglomerações úteis.
Enquanto o ministro que chega se confunde com o ministro que sai, o mesmo ministro da Justiça que usa a Lei de Segurança Nacional para perseguir quem “ofende” a honra do governante comete a prevaricação política e republicana de não investigar a ameaça (virtual, mas armada) sofrida pelo principal oponente, também presidente da República (2003-2011), que retorna à cena eleitoral.
No país dos dois ministros da Saúde, o oponente pode ser chamado de ladrão e o presidente não pode ser chamado de genocida.
A falência sanitária e a falta de leitos em outros países recuperam a autoestima do presidente e refrescam a imagem estabelecida no imaginário popular: aqui como lá, há virtudes e defeitos, não é verdade?
Ninguém tem culpa. Todos fazem o que é possível fazer. Culpa da pandemia. O presidente trouxe a vacina.
A mais rica cidade do país está na antessala do colapso hospitalar: de longe, o presidente contempla o sofrimento de inimigos.
Enquanto o ministro que sai se agarra à cadeira do ministro que chega, o presidente sofre pressões políticas desconcertantes. Os filhos, imitadores do pai, são investigados por lavagem de dinheiro.
A maldição do presidente é a perda do sono. Medo de ser envenenado. Medo de não se reeleger. Medo da prisão. Medo dos que perderam parentes e amigos que poderiam estar vivos.
Nunca um governante do Brasil foi tão acintosamente imoral, ridículo e perigoso.
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