O problema de limitar o consumo de notícias a certos horários do dia nos Estados Unidos é que, quando lemos sobre um ataque a tiros, no meio do texto descobrimos que não é o massacre das manchetes da véspera, mas sim o segundo em três dias.
Os americanos se acostumaram, na pandemia de Covid, a consultar mapas interativos com a evolução geográfica de casos e óbitos nos 50 estados.
A morte por armas de fogo é epidêmica há décadas, mas a aliança do lobby de fabricantes com os políticos que eles compram regularmente sabotou o acesso da infraestrutura de saúde pública a informações que pudessem formar um quadro nacional da carnificina diária.
Neste país, o ano de 2023 teve até aqui menos dias (25) do que massacres —um total de 36, com mais de 60 mortos. Ainda que pesquisa após pesquisa revele uma inegável maioria a favor de limites à orgia de acumulação de armas de fogo, especialmente as automáticas produzidas para militares em guerras, é justo supor que a sensibilidade pública está anestesiada pela rápida sucessão de novos massacres.
Soluções básicas para a epidemia de violência armada foram usadas e testadas em outros países. Não é preciso pesquisar curas milagrosas. Mas a estrutura jurídica necessária para proteção contra a fuzilaria não existe.
Quando os detentores do poder de legislar ou de tomar decisões executivas decidem que não vão se arriscar para proteger inocentes de atiradores superarmados, a fadiga de indignação se torna inevitável.
Se há uma novidade especialmente pornográfica introduzida no Brasil pelo bolsonarismo é o gozo com cada novo massacre, encarado como uma oportunidade de trollagem identitária. Toda morte de cidadãos deve ser explorada para manter o lucrativo direito de matar mais cidadãos inocentes.
A receita seguida é noticiar as mortes; especular sobre "os motivos" do assassino —como se qualquer ressentimento ajudasse a explicar homicídio em massa; e partir para explorar cada ângulo como um dardo. O autor do massacre do Ano-Novo Lunar na Califórnia era idoso e de origem asiática? A mídia de esquerda não o denunciou o suficiente porque ele não era branco?
Há uma expressiva parcela da população americana que hoje encara tragédias humanas como meros puxadinhos de guerras culturais. O genocídio programado da pandemia, nos EUA e no Brasil, não podia ser evitado porque a prioridade era não usar máscaras, não tomar vacina e marchar por uma falsa liberdade individual de se suicidar enquanto se matava os próximos vulneráveis.
Da mesma forma, massacres —raridades na maioria dos países ricos— são inevitáveis aqui porque a "esquerda" protege criminosos e não permite que a população se arme de forma indiscriminada. A cidade de Nova York, a mais densa do continente, teve que recorrer à Suprema Corte para restringir o direito dos cidadãos com porte legal de arma de levá-las casualmente para certos locais públicos.
Há vasto consenso sobre a urgência de agir para deter a barbárie dos massacres por armas de fogo. Há também a percepção resignada de que um dos partidos do sistema bipartidário americano prefere continuar sacrificando inocentes.
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