As midterms nos EUA me lembraram de um popular ditado —"Mãos ociosas são a oficina do demônio". Se houvesse TV a cabo e internet no tempo do Velho Testamento, o adágio seria "espaço e tempo ilimitados são a oficina do autoengano".
As pesquisas de opinião erraram de novo sobre quem ia votar e por que, e a propagada onda vermelha de vitórias republicanas não aconteceu. Os levantamentos impulsionaram uma usina de profecias autorrealizadas entre analistas políticos que abominam um vácuo.
Há muita expectativa não cumprida para avaliar, ainda que só em dezembro haverá uma definição do cenário em que Joe Biden governará. Como em 2020, a eleição para senador na Geórgia será crucial para os democratas manterem o controle do Senado pelo voto de desempate da vice Kamala Harris.
O Partido Republicano não conseguiu vender a agenda de crueldade teocrática e, em pelo menos quatro de cinco estados que incluíram o direito ao aborto em propostas, venceu a proteção do direito usurpado pela Suprema Corte em junho passado. O que mais não aconteceu?
Candidatos palhaços abençoados por Donald Trump, como o médico charlatão Mehmet Oz, não agradaram o eleitorado conservador. Mas o Partido Republicano continua dominado pela influência do ex-presidente que não para de lhe impor derrotas nas urnas, desde as midterms de 2018.
Os hispânicos não são um segmento monolítico do eleitorado, e não é possível nacionalizar a vitória retumbante que deram ao Trump envernizado Ron DeSantis, reeleito governador da Flórida.
Biden não é um pato manco, ao contrário do que sugerem as imprecisas pesquisas. Quando acabar a apuração e as esperadas contestações dos perdedores negacionistas das urnas, Biden terá a chance de emergir como o presidente democrata que menos sofreu derrotas nas primeiras midterms desde os anos 1940. George W. Bush obteve vitória nas suas primeiras midterms, mas no ano seguinte ao 11/9.
Não é possível usar largas pinceladas para compor uma imagem do cenário político dos EUA. Os estados devem se confirmar como laboratórios de mudanças, para melhor e para o catastrófico pior, como nos esforços para reduzir o acesso às urnas. Mesmo neste aspecto, ficou claro que a estratégia republicana de questionar eleições limpas e dificultar o voto como instrumentos de governo pela minoria foi derrotada.
Eleitores querem votar em massa —presencialmente, em horários prolongados, por correio, e esse direito sagrado da democracia não tem partido. Infelizmente, os sexos parecem ter, porque aumentou a diferença partidária entre homens e mulheres. O início da apuração revelou que 53% das mulheres votaram em democratas, ante 42% entre homens, distância certamente ampliada pelos ataques ao direito ao aborto.
É possível que a polarização política dos EUA resulte em eleições apertadas durante anos. Assim, os planos dos lunáticos trumpistas que comemoram a recuperação do controle da Câmara podem esbarrar no pequeno número de deputados republicanos que vão formar a maioria. Na Casa Branca, um favorito dos comediantes pela idade avançada e os folclorismos não pode ser culpado se estiver sorrindo e encontrar no espelho a imagem do mais consequente presidente democrata do último meio século.
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