As instituições estão funcionando. Esta frase foi repetida, com ou sem ponto de interrogação, nos Estados Unidos, durante mais de quatro anos e, desde o final da ditadura militar, não era tão usada no Brasil.
É difícil acreditar que as instituições estão funcionando quando acordamos com a notícia de que uma vigarista porta-voz do QAnon consegue manter a liderança republicana na Câmara como refém, em Washington, e uma extremista destrambelhada ganhou a liderança da poderosa da Comissão de Constituição e Justiça, em Brasília.
O funcionamento das instituições não depende apenas da independência dos três poderes. No caso americano, mais de dois séculos de regime constitucional sem interrupção foram cruciais para frear a perversidade anárquica de Donald Trump. Ele não teve tempo nem competência para minar todo aparato institucional do governo federal. Mas tentou e obteve sucessos que vão marcar especialmente o Legislativo e o Judiciário, além do mandato de Joe Biden.
A solenidade fúnebre na rotunda do Capitólio, nesta quarta-feira (3), quando deputados e senadores prestaram homenagem ao policial Brian Sicknick, assassinado na invasão da Casa estimulada por Trump, evocou o contraste com a violência e o caos que reinaram no mesmo salão, no dia 6 de janeiro. Um sinal de que as instituições estão funcionando?
A presença do líder republicano Mitch McConnell na rotunda não ofusca o fato de que ele passou as últimas duas semanas manobrando para obstruir o controle de comitês no Senado que os democratas ganharam legitimamente nas urnas. O niilismo do partido ainda é personificado pela liderança de McConnell, que, apesar de detestar Trump, decidiu que o ex-presidente era um idiota útil.
O tênue controle democrata do Senado –50 assentos mais o voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris– num momento em que o Partido Republicano não decide se quer ser a agremiação de lunáticos e renegados que instigaram a violação do Capitólio torna mais urgente outra pergunta: o Senado está funcionando?
Na mitologia do excepcionalismo americano, um clichê cunhado no século 19 descreve o Senado como “o maior corpo deliberativo do mundo”. Ninguém desmoralizou mais esse ufanismo do que o próprio McConnell ao declarar, em 2010, que sua única missão era tornar Barack Obama presidente de um só mandato.
A composição do Senado é frequentemente criticada como garantia de poder da minoria, um moderno projeto eleitoral republicano desde os anos de Richard Nixon. Como cada estado, não importa sua população, tem o mesmo direito de enviar dois senadores a Washington, os 50 senadores democratas hoje representam 41 milhões de americanos mais do que os 50 senadores republicanos.
Na terça-feira (9), vamos ter uma nova oportunidade de questionar se o Senado serve à democracia americana ou aos projetos de poder de seus membros. Infelizmente não há suspense à vista. Vai ser impossível reunir votos republicanos para condenar Donald Trump no segundo e sem precedente julgamento de impeachment.
Se no primeiro julgamento, há um ano, mal disfarçaram a hipocrisia ao absolver a criminalidade do presidente, desta vez, senadores que insistiram que Biden roubou a eleição se mostram mais desafiantes.
Como pode um grande corpo deliberativo deixar impune um presidente instigador da invasão terrorista que, por pouco, não custou a vida de seus membros?
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