Uma camada de neve cobria os arredores da Drake University, em Des Moines, Iowa, local do último debate democrata no estado que abre a temporada de primárias eleitorais da campanha presidencial, em fevereiro. Equipes trabalhavam para remover a neve do acesso ao pequeno teatro de 200 lugares na terça-feira (14), mas a brancura problemática estava no palco, na imagem dos seis pré-candidatos que se qualificaram para o debate.
O Partido Democrata, cujo caminho para a Casa Branca passa obrigatoriamente pelo voto negro, produziu mais de duas dúzias de pré-candidatos para 2020. Entre eles, um latino, um filho de taiwaneses, uma havaiana de ascendência multirracial e três negros. Apesar da diversidade inicial, a peneira das pesquisas e da arrecadação de fundos plantou apenas seis brancos no debate de terça-feira.
Mas se engana quem imagina que a brancura das caras na cédula vai provocar apatia e manter eleitores negros em casa durante as primárias ou na eleição geral. A vitória de Barack Obama, o único negro a chegar à Casa Branca em 240 anos, não explica as nuances do voto dos afro-americanos.
De fato, argumenta o autor e acadêmico Theodor R. Johnson, a passagem do carismático Obama pela presidência tornou o desafio maior para candidatos negros como os dois populares senadores Kamala Harris, da Califórnia e Cory Booker, de Nova Jersey. Ambos perderam o fôlego financeiro e não conseguiram galgar as pesquisas para se colocar entre os favoritos durante o ano de pré-campanha.
Johnson é professor da escola de Administração Pública da Universidade de Georgetown, em Washington, e fellow do Centro Brennan pela Justiça da Universidade de Nova York. Ele conversou com a Folha antes do debate e lembrou que, até a vitória surpreendente na convenção partidária de Iowa, em 2008, Obama, o novato senador negro do estado de Illinois aparecia 40 pontos percentuais atrás da então senadora Hillary Clinton entre eleitores negros. Tradução: negros procuram viabilidade eleitoral acima de identidade num candidato. Só quando Obama se mostrou vitorioso em Iowa, um estado com 90% de população branca, começou a ser levado a sério.
O professor aponta mais do que a personalidade de Obama e os intangíveis, como família e história pessoal de superação, para aumentar a expectativa sobre futuros aspirantes negros. A era Obama, diz ele, desaguou em tanto rancor racial, personificado em Donald Trump, que acendeu a luz vermelha histórica do eleitor que sofreu tanto para conquistar o direito ao voto e, em 2020, ainda enfrenta manobras de supressão eleitoral de minorias em estados controlados por republicanos.
O debate de terça-feira foi dominado por política externa, por causa da tensão com o Irã, e pela viabilidade eleitoral de mulheres, com a senadora de Massachusetts Elizabeth Warren dominando a noite.
O momento mais explícito sobre raça e política veio quando uma repórter da CNN perguntou ao jovem prefeito Pete Buttigieg, um dos quatro favoritos em Iowa, se seu apoio quase nulo entre eleitores negros representa o fato de que eles o conheceram melhor e simplesmente o rejeitaram. Buttigieg, prefeito de South Bend, em Indiana, se saiu com uma evasiva que soou paternalista: “Os negros que me conhecem melhor gostam de mim,” disse.
Como explicar que o favorito nas pesquisas nacionais Joe Biden mantém a preferência de mais de 50% dos eleitores negros? Não é apenas seu cartão de visita como número dois do popular Obama, avisa Theodor Johnson. Afinal, Biden tem um currículo racial duvidoso, com dois pecados históricos: a maneira como liderou as audiências para confirmação do juiz negro Clarence Thomas para a Suprema Corte em 1991. Thomas fora acusado de assédio sexual pela ex-assistente negra Anita Hill e o tratamento que ela recebeu entre os senadores está na origem do futuro movimento #MeToo.
O segundo pecado é o apoio à legislação anticrime de Bill Clinton, em 1994, uma reforma que lotou as prisões americanas desproporcionalmente com negros.
Apesar da tendência a cometer gafes quando fala de minorias, “o apoio negro a Joe Biden é um dos pontos mais sólidos de sua campanha,” diz o professor Johnson. Ele explica que a épica rejeição a Donald Trump entre eleitores negros faz com que eles apostem tudo no homem visto como o mais capaz de derrotar o atual presidente.
Os negros americanos não são um bloco eleitoral monolítico. Os eleitores acima de 45 anos se posicionam geralmente à direita dos mais jovens, o que ajuda a explicar o vasto apoio ao moderado Biden.
Em 2019, apenas um quinto do eleitorado negro se identificava como não moderado ou conservador. Mas o conservadorismo entre negros não se traduz em deslealdade partidária. Na eleição de novembro de 2018, 90% dos negros votaram em candidatos democratas.
A marca do Partido Republicano hoje, lembra Johnson, é oposição a direitos civis, igualdade e programas de governo. O que Trump conseguiu foi dar uma cara mais cruel ao partido com sua disposição retórica para degradar minorias, de alimentar divisão racial.
Mesmo o conservadorismo negro, explica o professor, não se alinha em tudo ao branco. “Eles são anti-aborto, defendem o casamento tradicional, impostos baixos e defesa militar forte,” traços comuns ao conservadorismo histórico. Mas o liberalismo branco, ele distingue, vem das escolhas que o privilégio de ser branco confere. Conservadores negros não recitam slogans como estado mínimo, querem rede de proteção social e políticas públicas para reduzir as desvantagens que ainda experimentam.
O professor Johnson prevê que a presença eleitoral negra, que aumentou em 2018, vai ser ainda mais alta do que a dos brancos, em 2020. A batalha nas urnas adquiriu nova urgência existencial. E o tiozão Joe Biden ainda é visto pelo eleitor negro como o santo guerreiro contra o dragão da maldade.
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